Você tem percebido as novas direções que o cenário artístico brasileiro está tomando e os pilares que estão impulsionando essas transformações? Ouvimos Ana Roman, Superintendente Artística no Instituto Tomie Ohtake; Felipe Molitor, curador na SP-Arte; Priscyla Gomes, curadora e pesquisadora independente; e Raphael Fonseca, curador no Denver Art Museum, nos Estados Unidos e curador-chefe da edição da Bienal do Mercosul deste ano, para elaborar uma análise do panorama atual, além de levantar alguns pontos emergentes que tendem a receber mais atenção a médio prazo.
DESCENTRALIZAÇÃO MERCADOLÓGICA DO SUDESTE
Enquanto a produção artística brasileira há muito tempo é geograficamente diversa, os eixos mercadológicos e econômicos da arte são historicamente concentrados entre Rio de Janeiro e São Paulo. Mas podemos dizer que essa descentralização, ainda que inicial, já está em curso e tem apontado para caminhos bastante promissores.
Como um dos pontos viabilizadores deste deslocamento, podemos indicar o crescente consumo das redes sociais – particularmente relevante considerando que o Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de usuários das plataformas. Esta ascensão possibilitou maior visibilidade para artistas de diferentes origens, com barreiras burocráticas significativamente menores.
Em resposta ao movimento, duas direções institucionais em destaque estão se desenvolvendo. A primeira se constitui de instituições sudestinas abrindo espaço para produções de artistas, curadores e pensadores de fora do eixo Rio-SP – pense no surgimento da feira SP-Arte Rotas Brasileiras, dedicada a expandir a visão sobre a produção nacional; ou de exposições que revisaram a Semana de Arte Moderna em 2022, dando luz para produções modernistas de fora de São Paulo; ou ainda em mostras como “Dos Brasis” no Sesc Belenzinho, que apresenta 240 artistas das cinco regiões do Brasil e circulará por todas elas; entre outros.
Simultaneamente, temos testemunhado as próprias cidades não-sudestinas ganhando maior autonomia e visibilidade, podendo impulsionar seus próprios artistas, sem que estes precisem se deslocar por milhares de quilômetros para atuarem no meio. A exemplo disso, em 2022, tivemos as inaugurações da Pinacoteca do Ceará, do Centro Cultural do Cariri e do Museu da Imagem e do Som, que estrearam um foco cultural inédito no Ceará. A criação da feira ArtPe em 2022, bem como a presença de Marina Abramovic na Usina de Arte no início de fevereiro de 2024, engrossaram o caldo artístico de Pernambuco. Já a abertura do Museu de Arte Contemporânea da Bahia, além da expansão do Pivô e das galerias Galatea e Nonada, que inauguram novas sedes na capital baiana, voltaram os holofotes da arte para Salvador no final de 2023 e início deste ano. Além destas, não poderíamos deixar de citar a inauguração da sede da galeria Simões de Assis em Santa Catarina em 2022, além da estreia da Bienal das Amazônias em Belém e a criação da Galeria Cerrado em Goiânia, que se destacaram no calendário do ano passado.
Raphael Fonseca expõe sua esperança sobre estas circulações: “Espero que as pessoas circulem não só do Sudeste ou para o Sudeste, mas também internamente, ou seja, que o artista de Salvador faça uma residência em Porto Alegre, que alguém de Porto Alegre vá para Salvador, alguém de Belém vá para Brasília (…) que não necessariamente tenha que ‘pagar um pedágio’ para Rio e para São Paulo.”
O HIPERESTÍMULO VISUAL
Em um mundo onde a maior vitrine para seu trabalho é uma rede social alimentada por vídeos e fotos, trabalhos conceituais e menos estéticos têm espaço? A constante inundação de conteúdos visuais em nossas rotinas tem treinado o olhar e a atenção de um público que muitas vezes privilegia obras de arte com forte apelo estético, sendo estas mais imediatamente cativantes e assimiladas.
Como sintoma disso, podemos perceber a constante alta de vendas de mídias como a pintura, que segundo Felipe Molitor, ainda é o formato que tem “girado” o setor: “O mercado segue pautado por obras de arte em mídias tradicionais, isso pouco mudou”. A partir de um levantamento feito com as sete principais galerias de arte de São Paulo – eixo econômico ainda termômetro para o país –, dos 48 artistas novos representados nos últimos dois anos, 30 são pintores ou têm pesquisas extensas com a técnica pictórica.
O curador ainda ressalta que os artistas devem estar atentos para que as redes sociais não determine seus trabalhos: “A influência das redes sociais pode ser algo muito problemático para quem produz arte. Talvez a pesquisa fique muito ‘ao sabor’ das imagens propostas pelos algoritmos – afinal, rede social também é mercado.”
EXPOGRAFIAS PROPOSITIVAS PARA O PÚBLICO
Especialmente depois de passarmos pela pandemia, isolamento social e o aumento dos modelos de trabalho em ambientes virtuais, as nossas relações entre corpo e espaço mudaram muito. As chamadas “exposições imersivas”, embora já não estejam mais no auge do interesse como anteriormente, evidenciaram o potencial de atrair um público realmente amplo sob o pretexto da arte e marcaram mais uma mudança na forma como enxergamos a interação entre exposições e público. Enquanto museus e equipamentos culturais, em sua maioria, costumam dispor de obras fixadas nas paredes e na altura dos nossos olhos do visitante, propostas expográficas que repensam escalas e percursos demandam uma postura mais dinâmica do visitante, exigindo mais movimentos corpóreos pelo espaço, por exemplo.
Segundo a pesquisa “O poder do público: tendências globais para o futuro dos museus” do Oi Futuro, nós vivemos a “Era do Protagonismo”, na qual a entrega de experiências direcionadas ao público se torna essencial. Se por um lado, o conceito de “cubo branco” surgiu como uma forma de trazer foco total para as obras de arte, proporcionando um ambiente onde nenhum elemento concorresse ou interferisse com elas – e até uma espécie de “sacralização” da arte –, a atual era demanda que o público é que esteja no centro, sendo participante ativo ou até co-autor das proposições. Neste contexto, ambientes apenas contemplativos e intimidadores não têm mais vez.
Evidentemente que isso não quer dizer que precisamos fazer da cena contemporânea, espaços de espetáculos apelativos. Afinal, temos diversos exemplos de propostas populares que, bem ajustados aos conceitos das obras, somam-se a poética do artista, como a exposição de Marta Minujín na Pinacoteca no ano passado, que combinou ludicidade com potência política; “Tomie Dançante” no Instituto Tomie Ohtake que trouxe uma expografia que repensou completamente o espaço, incluindo referências à cenografia criada por Tomie para a ópera Madama Butterfly; “Evandro Teixeira” no Instituto Moreira Salles, que exibiu os registros do enterro de Pablo Neruda suspensos pela sala, com poemas do próprio Neruda em seus versos; ou ainda a 35ª Bienal de São Paulo, que propôs aos visitantes um novo percurso pelo Pavilhão do Ibirapuera, repensando o caminhar como uma coreografia.
Priscila Gomes relembra a exposição “Obsessão infinita” de Yayoi Kusama no Instituto Tomie Ohtake, que em 2014 formou um movimento inédito de filas nos arredores da instituição, impulsionado pela divulgação orgânica dos visitantes. Ao se deparar com as instalações verdadeiramente “imersivas”, o público gostou de se ver e se mostrar no ambiente museológico. Segundo Gomes, “a possibilidade de registro da exposição nas redes sociais foi uma forma da instituição também trazer públicos que normalmente ainda não visitavam o museu”.
QUAIS PAUTAS E ARTISTAS ESTÃO EM EVIDÊNCIA?
Além da questão da representatividade identitária (artistas indígenas, mulheres, negros, LGBTQIAP+), que não é mais tão nova, ainda permear as pesquisas curatoriais e, consequentemente, as dinâmicas de mercado, ela tem se complexificado, criando maiores intersecções de temáticas e ampliando as possibilidades de criação.
Mas para além disso, obras de artistas autodidatas têm sido revistos e prometem continuar reverberando nas grandes mostras dos próximos tempos. A exemplo disso, as atuais exposições “A Terceira Margem da Estrada: Arte Popular Brasileira” na Galeria Luis Maluf e “Mulheres por Mulheres” na Galeria Estação apresentam uma expressiva quantidade de artistas dedicados à esta produção. No ano passado, diversos eventos também evidenciaram esse movimento. A programação anual do MASP foi dedicada às “Histórias Indígenas”, enquanto na edição da SP-Arte Rotas Brasileiras, foram apresentados diversos artistas autodidatas nos estandes das galerias, além da exposição “Arte dos Mestres”, organizada pela ONG Artesol em um espaço paralelo à feira.
Vale dizer ainda, que para este ano, aguardamos ainda a Bienal de Veneza, que promete incluir artistas “populares” em sua concepção de “estrangeiro” proposta por Adriano Pedrosa.
COMO A BIENAL DE VENEZA VAI AFETAR O MERCADO DE ARTE BRASILEIRO?
Quando se fala em movimentos do sistema artístico, é impossível ignorar a influência da Bienal de Veneza, que sem dúvidas ainda é uma das principais referências que apontam as direções que serão trilhadas pelo nicho. Na edição de 2022, a curadora Cecília Alemani apresentou “The Milk of Dreams”, uma exposição inspirada na produção da surrealista Leonora Carrington , cujo trabalho foi apresentado com destaque no Giardini. Menos de um mês após a abertura da exposição, o recorde de leilão da artista foi quebrado e sua obra apareceu quatro vezes entre as 10 maiores vendas em leilões de 2022 por artistas surrealistas falecidas.
Neste ano, com o curador brasileiro à frente da exposição, nosso país promete estar no centro das atenções globais, estando pela primeira vez com a significativa presença de 30 artistas nacionais participantes. “No caso dos artistas brasileiros, acho que essa Bienal pode mexer muito mais no mercado europeu, do que no nosso”, pondera Molitor considerando que a maior parte dos nomes brasileiros anunciados já se estabeleceram no mercado interno, mas podem ascender seus preços no internacional.
PARA ONDE AINDA NÃO ESTAMOS OLHANDO, MAS DEVERÍAMOS?
AMPLIAÇÃO DAS VOZES DA TERCEIRA IDADE
Embora a valorização e reconhecimento de artistas mais velhos ainda seja incipiente hoje, é possível avistar sua emergência em um futuro próximo. À medida que a expectativa de vida tem aumentado, e pessoas mais velhas mantêm um interesse ativo pela produção e compra de obras, o mercado de arte – que atualmente tem se mostrado bastante etarista – inevitavelmente terá que lidar com essa realidade demográfica. No cenário atual, muitos editais e oportunidades de representação mercadológica tendem a privilegiar artistas de no máximo 30 anos de idade. Mas além deste enaltecimento da juventude ser desproporcional e injusto com as demais gerações, em pouco tempo ele será numerosamente mais excludente. Uma busca real e interessada por produções promissoras, independente da idade do artista, pode pode revelar nomes enérgicos, com pautas diversas, capazes de revitalizar o panorama.
MEIO AMBIENTE EM PAUTA
Não é de hoje que artistas realmente engajados com questões relacionadas às crises climáticas pautam o assunto em suas produções. Mas ainda não se pode dizer que o circuito de arte tem atribuído a atenção que um dos mais urgentes problemas globais requer. No ano passado, pela primeira vez, a temperatura média global foi 2ºC mais quente em relação aos níveis pré-industriais, de acordo com dados preliminares compartilhados por Samantha Burgess, vice-diretora do Serviço de Mudança Climática Copernicus, da União Europeia. Só no Brasil, nos últimos 60 anos, os registros das chamadas ondas de calor aumentaram 642%.
Nesse sentido, podemos apontar que muitas pinturas de artistas indígenas que enaltecem uma conexão harmônica entre os seres vivos e o seu entorno, como Carmézia Emiliano, Denilson Baniwa, Coletivo MAHKU e outros, tem sido proeminentes. Em concordância com a emergência do assunto, vale dizer, que o MASP dedicará todas as suas exposições de 2025 à temática de meio ambiente. Mas, compreendendo que a arte reflete os anseios e necessidades do presente, é esperado que essas temáticas prosperem ainda mais no meio artístico.