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Existe prazo de validade para artista?

Precisamos conversar sobre a obsessão do mercado por sangue novo, que negligencia uma geração de artistas e atropela o tempo de amadurecimento das produções

por Giovana Nacca
Obra “Anti Aging” de Margot Pilz

A grande chave do sucesso de um galerista, colecionador ou curador, é fazer a aposta certa, a descoberta do diamante bruto, da promessa do próximo talento revolucionário da cena artística. Do ponto de vista mercadológico, apostar em artistas emergentes pode ser substancialmente vantajoso, afinal o investimento inicial tende a ser consideravelmente menor em comparação ao potencial retorno a longo prazo. Do mesmo modo que, em caso de resultados menos promissores, o prejuízo pode não ser tão alarmante. 

É claro que essas apostas não são nada simples, e que o acolhimento de novos nomes para a cena artística é essencial, além do cenário ainda ser bastante excludente. Mas você já reparou como sempre associamos a figura de um jovem à promessa de revolução e fonte de criatividade? – ou enquanto eu descrevia a busca pelo “talento emergente” você imaginou uma pessoa com mais 60 anos iniciando suas experimentações em artes? Essas concepções e a eterna busca pela juventude são enraizadas na nossa sociedade e, consequentemente, se refletem no circuito artístico. Note que, ironicamente, o Dia das Crianças e o Dia dos Idosos são celebrados durante o mesmo mês de outubro, sendo o segundo muito menos destacado. Enquanto o primeiro influencia grande parte da programação educativa mensal dos museus e centros culturais, o Dia dos Idosos sequer costuma ser lembrado. Esses são sintomas do despreparo destes espaços para com o público idoso, mas isso já é assunto para uma outra conversa. 

Retrato de Louise Bourgeois, em 2001, por Herlinde Koelbl.

Demérito ou condenação: “se alguém não conquistou nada grandioso antes dos 30 e poucos anos, é muito improvável que conquiste depois.” – Albert Einstein

O mesmo sistema que coloca prazo de validade em artistas, é também aquele que “os atrasa”, por se apoiar em esqueletos de segregação social. Fato é que nós criamos um sistema dicotômico que categoriza artistas entre “jovens em ascensão” e “experientes consagrados”, negligenciando aqueles mais maduros que ainda buscam iniciar suas trajetórias na área; os que precisaram de mais tempo para conseguir produzir algo que seja de fato relevante e inovador; além daqueles que trabalham desde jovens e têm uma produção interessante, mas por infinitos fatores externos ainda não ascenderam no mercado. Entretanto, essa estrutura não condiz com a realidade da carreira artística onde, especialmente em nosso país, a incerteza é uma constante e, consequentemente, muitos a profissão como uma segunda (ou até terceira ou quarta) possibilidade. 

“É desafiador, para algumas camadas [sociais], ‘cair de cabeça’ e viver de arte”, expressa Josi, artista mineira de 40 anos. Ela, que antes dos 20, havia tentado ingressar na faculdade de Artes Plásticas na UFMG, mas não passou no teste de habilidades específicas, fez sua primeira graduação em Letras e exerceu a profissão de professora de português na escola básica. Ou seja, dentro deste lógica acadêmica, antes mesmo de entrar na faculdade de artes, o artista já precisaria ter tido tempo e dinheiro para desenvolver a tal habilidade específica, como o nome da prova diz. Quando Josi conseguiu certa estabilidade na carreira, em 2017, tentou novamente trilhar o caminho das artes e entrou na Escola Guignard. Mas lá ela recebeu choque de realidade: numa conversa sobre carreira com um docente, ele disse que o mundo da arte é cruel com quem não tem “coragem de chegar cedo”. Este docente passou a mostrar alguns editais de prêmios, exposições e residências que tinham restrições de idade – que geralmente, não chegavam nem aos 30 anos. Entre estes, um do Instituto Tomie Ohtake – que ano passado contemplou Josi em outro prêmio, sem restrição etária, dedicado às mulheres, proporcionando grande visibilidade à artista –, “a própria Tomie começou mais tarde e o prêmio tinha uma restrição, que era até contraditório, se a gente parar para pensar”, analisa Josi. 

Josi
Josi, da série O que não passa, 2022

A galerista Jaqueline Martins comenta para nós sobre Martha Araújo, Regina Vater, Lydia Okumura, entre outras artistas que ganharam representação comercial de sua galeria quando estas já tinham mais de 60 anos de idade – histórico inexistente em diversos concorrentes. Apesar da galeria sempre buscar trazer novos nomes para os holofotes, muitas artistas mulheres não têm as mesmas oportunidades por se distanciar da cena artística ao precisarem exercer outras profissões para “colocar dinheiro em casa”, dedicar-se a maternidade ou a outros papéis não-remunerados – uma carga que a sociedade misógina impõe desproporcionalmente sobre elas. “Está implícito, por sermos mulheres, que vamos passar por pausas na carreira que homens não passam”, reflete Jaqueline, que também percebe que a maioria das artistas que foram representadas em idades mais avançadas, têm em comum a não-maternidade ou a maternidade tardia, depois dos 50 anos.

A artista Thatiana Cardoso, de 39 anos, que produz arte ininterruptamente há mais de uma década e ainda não possui representação em galeria, relata que demorou dez anos para entrar na faculdade de artes por não ter condições financeiras de fazer antes. “Quando eu me formei, com 32 anos, eu sentia que já estava velha, porque eu já não podia participar de vários editais para ‘jovem artista’. Eu estava grávida, e eu entendi que eu não podia ter mais nenhum gap na minha produção, então eu criei essa meta de que eu não poderia parar de produzir nenhum ano, o que foi muito difícil porque eu tive depressão pós-parto”. Mas a determinação não foi suficiente para vencer a misoginia quando um galerista afirmou diretamente para ela que artistas que são mães não entram na galeria dele e que estas iriam primeiro cuidar dos filhos, depois dos netos e só então, talvez, elas pudessem ser representadas. 

Artista bom é artista com experiência

A célebre artista, teórica e professora, Fayga Ostrower comenta em seu livro Criatividade e Processos de Criação (1977) sobre a injusta expectativa que criamos sobre os adolescentes, afinal, segundo ela, o amadurecimento da produção de um artista anda lado-a-lado com o seu amadurecimento pessoal: “Ao jovem urge-se: ‘rápido, é agora, mostre-se, revele-se, seja criativo, depois será tarde.’ (…) Como poderia um jovem de 18 anos, por mais talentoso e inteligente que fosse, já se ter encontrado enquanto ser humano?”. Ostrower discorre e explica que a realidade não condiz com o “mito de uma juventude inovadora” e que, na verdade, se analisarmos a trajetória dos considerados grandes artistas, revolucionários da arte, a maioria teria sido convencional em sua juventude, afinal, para começar, existe uma maior necessidade de se apoiar nas estruturas já estabelecidas, seguindo uma maior influência externa e se apoiando em seus mestres – sejam estes de fato professores ou outros artistas contemporâneos a ele. 

“Um Rembrandt, de talento invulgar, aos 18 anos já se estabelecendo como mestre pintor independente, pinta à maneira de Pieter Lastman (professor de Rembrandt e assim entrando para a posteridade). (…) Nem Goya, após ter concluído os famosos cartões para as tapeçarias reais, mais de sessenta belíssimas pinturas, e após se ter tornado retratista célebre e muito solicitado nas altas esferas sociais de Madrid, aos 40 anos de vida, compara-se com o Goya que, aos 50 anos, viria a empreender a série dos ‘Desastres da Guerra’, ou com Goya aos 70 anos, da fase negra, ou ainda com o extraordinário Goya de 80 anos.” A autora ainda atribui o aperfeiçoamento da produção de Goya à visão que ele teve depois de vivenciar algumas experiências intensas e transformadoras, como as invasões da Espanha, uma guerra civil, o retorno da inquisição e o auto-exílio, reforçando seu ponto de que o amadurecimento de uma produção é intrínseco às vivências do artista. 

Para qual futuro estamos caminhando?

Grauben do Monte Lima, Sem título, 1970

Na ArtRio deste ano, a galeria Galatea apresentou os trabalhos de Grauben do Monte Lima, artista carioca que começou a pintar aos 70 anos e, com o apoio do artista e professor Ivan Serpa, se desenvolveu e rapidamente e ganhou espaço em instituições nacionais e internacionais, além de participar, consecutivamente, de três edições da Bienal de São Paulo.

A pioneira Judith Lauand, única mulher do grupo concretista Ruptura, nos deixou aos 100 anos de idade, em dezembro do ano passado, quase sem testemunhar o devido reconhecimento de suas contribuições para arte brasileira, tendo falecido poucos dias depois da inauguração de sua maior exposição individual, no MASP.

Dentre os maiores nomes mundiais da arte contemporânea, Louise Bourgeois, Tomie Ohtake, Yayoi Kusama, Maria Martins e tantas outras, começaram a se dedicar ativamente à produção artística depois dos 30 anos de idade, mas a maioria só ganhou grande reconhecimento depois dos 60 ou 70 anos. Há ainda exemplos como Anna Bella Geiger, que aos 14 anos de idade já era aluna de Fayga Ostrower, mas passou muitas décadas invisibilizada até se tornar o grande ícone da arte brasileira que é hoje. Mas e se não tivéssemos olhado para esses nomes? E quantos outros podemos estar boicotando atualmente?

Hoje, e cada dia mais, as engrenagens que movem o circuito de arte giram mais rápido, gerando cobranças de produtividade criativa em escala fordista. De um lado, um mercado obsecado por “sangue novo”. Do outro, a população mundial idosa é cada vez maior – e a conta não fecha. A Divisão de População da Organização das Nações Unidas (ONU) estima que, nas últimas duas décadas, nós aumentamos em quase 7 vezes o número de pessoas que ultrapassaram o centésimo ano de vida e a tendência é continuarmos crescendo esse número. Ou seja, além da hipervalorização da juventude ser desproporcional e injusta com as demais gerações, em um futuro muito próximo, ela será numerosamente mais excludente.

É urgente que mudemos nossa lógica de absorção do mercado, sendo menos impulsionados pelas tendências efêmeras que, sob a roupagem da inclusão e diversidade, têm se revelado vazias. Uma busca genuína por novas produções que reflitam as relevâncias e carências da atualidade, pode revelar nomes enérgicos, ativos, promissores e de gerações realmente diversas.

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