“Eu cresci nessa constante negociação da minha identidade . Vir da Etiópia no meio de uma guerra civil, essa mudança radical e instabilidade, sempre fez parte da forma como eu lido com o mundo”, revelou Julie Mehretu num vídeo produzido pelo Whitney Museum sobre a retrospectiva que abriu no museu reunindo desenhos, gravuras e pinturas de 25 anos de prática.
Mehretu nasceu em 1970 em Addis Ababa, filha de pai etíope e mãe americana. Eles migraram para Michigan no final daquela década, depois que a junta militar conhecida como Derg iniciou uma campanha de terror no país. Ainda estudante, ela fez mapas e gráficos que sugeriam algum tipo de análise demográfica, mas os traços e rabiscos nunca revelavam o que estava sendo representado. Ela acabou ganhando destaque no mundo artsy no início dos anos 2000 por fazer grandes pinturas criadas a partir de várias camadas de diagramas arquitetônicos e paisagens urbanas.
Há cerca de dez anos, no entanto, seu trabalho ganhou mais uma camada profunda, potente e pertinente – ela seguiu investigando a abstração, gestual e caligráfica, mas começou a inserir narrativas sobre as tensões que evocam os deslocamentos humanos. Com o tempo acabou representando um novo tipo de abstração descolonial dentro da tradição da arte ocidental.”Julie sempre pensou sobre as formas em que o colonialismo e a supremacia branca se refletem no mundo onde vivemos hoje. Há algum tempo ela pesquisa abstração tentando encontrar formas de contar histórias sem se apoiar na figura literal.”, ressalta Rujeko Hockley, curadora da mostra.
A artista geralmente começa os trabalhos fazendo uma longa pesquisa de imagens que lhe interessa: podem ser fotos de motins raciais; campanhas anti-imigração; passeatas a favor do Brexit; centros de detenção ou campos de refugiados na fronteira dos EUA; manifestações da Primavera Árabe; ou incêndios em florestas. Mehretu se interessa pelo drama das circulações globais – a fuga de pessoas, a propagação de infecções virais e levantes políticos. Tinta acrílica, pistolas de spray, papel vegetal, serigrafia e até o photoshop – ela usa diferentes técnicas para fazer uma espécie de colagem de elementos e estruturas dessas imagens e trabalha em cima delas fazendo sobreposições e recortes, desfocando-as e embasando-as, inserindo impressões e, por fim, próprio gesto. Desta forma, ela mostra como a abstração pode incorporar múltiplos fluxos e narrativas, abrindo novas perspectivas sobre a liberdade.
Os desenhos Migration Direction Map, de 1996, são compostos por dezenas de células e círculos sobrepostos com setas em todas as direções. O que estaria migrando? Pássaros, pessoas, armas ilegais? Todos e nenhum deles. O que Mehretu estava começando a imaginar, naquela época, era a dinâmica dos sistemas em movimento.”Aos poucos ela se envolveu com a diáspora e violência, mas sem sair do terreno da pintura abstrata (…) Você tem uma sensação vertiginosa de profundidade – como se a perspectiva de um ponto da pintura renascentista tivesse desmoronado, de uma ‘janela para o mundo’ em um turbilhão de movimentos e migrações”, analisa Jason Farago para o NY Times.
Em Invisible Sun, de 2014, linhas pretas mais longas assemelham-se a corvos, sugerindo mais uma narrativa ao trabalho (como não pensar na dramática instalação The Murder of Crows, de Janet Cardiff & George Bures Miller, exposta em Inhotim). Já em Mogamma (A Painting in Four Parts), inspirada pela Primavera Árabe, Mehretu sobrepõe desenhos de Nova York, Cairo e Adis Abeba com um emaranhado de linhas curtas, mais nítidas e desenhadas livremente, marcando os corpos da Praça Tahrir.
Hoje as pinturas começam com as imagens retiradas de sites de notícias trabalhadas no Photoshop para ficarem embaçadas e ilegíveis – a informação torna-se, então, apenas uma composição de cor, luz e sombras. “Não quero ditar, determinar ou explicar nada a ninguém, são pinturas para serem sentidas e formadas pelo tempo que vivemos. Acho essencial que uma obra seja, quando alguém se envolve, um esforço para fazer sentido sobre quem somos, onde estamos e o que somos no mundo”, explica Mehretu.
Para criar Hineni (E. 3:4), a artista trabalhou com fotos de incêndios florestais na Califórnia e o incêndio de casas Rohingya em Mianmar. Pinta crises atuais como uma experiência corporal. Uma das pinturas inéditas, Ghosthymn (after the Raft), fica numa parede de frente para a janela, com vista para o rio. “O Houston River é a razão para essa cidade existir e representa a natureza imigrante desse lugar! As imagens de fundo são baseadas em imagens de campanhas anti-imigração. Eu estava interessada na justaposição destas imagens que causam um borrão: você não identifica o que está acontecendo, mas pode sentir o tumulto dessa experiência, desse grande movimento contra a imigração”, completa a artista
Assim como muitos artistas marcados, Mehretu (uma negra, mulher, homossexual, imigrante) se recusa a ser reduzida ao papel incumbido/esperado por museus e colecionadores de fazer um levantamento critico identitário. Prova que é, antes de tudo, uma habilidosa pintora. Farago ressalta que os trabalhos não são “sobre” motins ou incêndios florestais, assim como os palheiros de Monet não são “sobre” alimentos para fazendas. Tratam-se, essencialmente, de belíssimas abstrações.