“O tantra me conectou com a ideia de usar números, sistemas e matemática. Quando vi os primeiros desenhos tântricos do universo – um tipo de análise baseada em grade de um objeto ou do mundo por meio de uma linguagem particular de formas – percebi os números como um tipo de tradutor, uma forma que me afastou dessa ideia de sujeito e expressão subjetiva”, revelou o artista Charles Gaines que abriu, este ano, sua primeira mostra no Reino Unido.
Um dos mais importantes nomes da arte conceitual norte-americana, Gaines apresenta Multiples of Nature, Trees and Faces nos dois espaços da Hauser & Wirth em Londres – ambos estão fechados para evitar a contaminação do Covid 19, mas devem reabrir dia 12 de abril e é possível ver uma completa versão virtual no site da galeria.
Influenciado por Magritte e Matisse, impactado por escritores e ativistas como Edward Said e Frantz Fanon e amante de jazz ( ele toca bateria!), Gaines ficou conhecido por transformar tudo que acha bonito em sistemas matemáticos que revelam formas nem sempre percebidas no cotidiano, antes de Gaines decodificá-las. O tema vai desde o rosto humano, passando por ramos de uma árvore até os movimentos de um balé.
O que é objetivo e o que é subjetivo na arte? Gaines desencadeia esse vaivém constante em seu trabalho, entre o que você vê, o que você pensa e o que você sente; entre a abstração e o realismo; entre o lúdico e o racional. E, apesar do rigor de suas estratégias, cria obras inevitavelmente oníricas e românticas.
Há cerca de 30 anos ele desenvolveu um sistema para mapear rostos e provar a multiplicidade racial. Para esta exposição, o artista buscou pessoas que se identificaram como multirraciais ou multiétnicas e as convidou a fazer parte da obra. Cada rosto representado em placas de acrílico a partir de duas cores: uma para as linhas de contorno da face e a outra para o espaço entre as linhas de contorno. Os diferentes rostos da série são mapeados sequencialmente – os pequenos quadrados coloridos e numerados são como pixels – e sobrepostos um a um, em diferentes ordens para cada trabalho.
Quando a imagem é sobreposta, as cores dos rostos se fundem em algumas áreas e permanecem inalteradas em outras. “A fusão de contornos produz diferentes padrões e efeitos de cor que dinamicamente e formalmente atuam em uma relação binária: a estrutura generalizada de um rosto e as diferenças entre os rostos”, revela o texto da mostra. Ou seja: desta forma o artista propõe uma discussão sobre raça, identidade e subjetividade. Ele cria uma sobreposição de rostos e números que busca interrogar ideias de representação e, mais especificamente, as ideias políticas e culturais que moldam a compreensão do conceito de identidade multirracial.
Martina Crouch, por exemplo, é “tribo igbo da Nigéria” e “branca”, de acordo com o título da obra. Seu rosto fotografado está atrás da tela de acrílico, pintada com os contornos sobrepostos que parecem trazer pessoas do seu passado reunidas, como uma herança fantasmagórica, em sua presença única. Verde, vermelho, amarelo e turquesa – eles tornam-se auras.
“Acredito que o sistema de mapeamento destes rostos em série pode, por si só, tornar-se significativo por ser traçado em uma analogia com certos conceitos de reprodução humana, como hereditariedade, genealogia, descendência, linhagem, genética, etc.Uma das principais questões que me interessa em trabalhar com sistemas é que, em um determinado ponto, sua relação com qualquer ideia é arbitrária”, revela o artista no site da galeria. “Eu estava interessado em desfazer a noção de raça, fazendo um comentário por meio da analogia entre o processo sistemático de sobreposição e o processo biológico da reprodução”, completa Charles Gaines.
A série com as árvores começou ainda na década de 1980 e, para essa individual, o artista fotografou espécies que encontrou em Melbury, no norte da Inglaterra, para onde viajou no início de 2020. Impressionado pela imensa largura das árvores locais, o artista aqui a mesma lógica dos rostos: seleciona um conjunto de árvores e plota cada uma atribuindo-lhe uma cor e uma grade numerada que reflete a forma completa retratada na fotografia fixada no fundo da obra. As sequência em diferentes cores são sobrepostas instigando reflexões sobre a espécie.
Os ramos escuros contrastados com o céu branco são visíveis por trás de qualquer área de acrílico sem pintura e, em alguns momentos, tornam-se sombras expressivas por trás dos quadrados multicoloridos.”À medida que vejo os sistemas e as obras evoluirem e as imagens sendo produzidas, lembro-me de que o que estou vendo não é um produto da minha intenção, mas sim um produto de um sistema, e o sistema tem uma relação completamente arbitrária com o objeto que está sendo representado”, explica o artista que abre mão da subjetividade da criação em favor da forma meticulosamente organizada de acordo com algoritmos ou regras ocultas.
As obras mais antigas, em preto e branco, são marcadas pela extrema austeridade. “Até as palmeiras de Los Angeles, onde ele mora, perdem um pouco de sua exótica frivolidade quando retratadas por meio de uma e às vezes duas camadas de acrílico: quadriculadas, analisadas, distanciadas”, explica Laura Cumming, no The Guardian. Entretanto, nessa exposição elas ganham uma paleta de cores tirada da própria natureza, mas poucas vezes vistas juntas, que lembram os experimentos impressionistas: o cobalto dos céus, os tons de amarelo e laranja do outono e os diferentes tons de verde da primavera.
Cumming, que viu a exposição pessoalmente, afirma ser “difícil deduzir uma conexão óbvia ou lógica entre a forma natural e a abstração do acrílico. A relação, como com as grades de Mondrian, parece mais poética e transcendente”. Os números dizem isso tanto quanto as cores, com suas permutações e progressões em série. Mesmo assim, “apesar de toda a ênfase nos sistemas, conectando Charles Gaines de volta a John Cage e Sol Lewitt, o trabalho é incrivelmente lindo”, completa.
Multiples of Nature, Trees and Faces
Data: Até 1 de maio
Local: Hauser & Wirth
Endereço: 23 Savile Row, Mayfair, London W1S 2ET
*De acordo com as normas de segurança de Londres, a galeria vai reabrir na segunda-feira, dia 12 de abril. Para agendar a visita clique aqui.