“Existe uma diferença entre força e violência. Nós estamos usando nossa força, mas a polícia usa a violência”, declarou um dos líderes das manifestações que tomaram Hong Kong em 2019 que participa do mais recente documentário dirigido pelo artista Ai Weiwei, Cockroach.
Em junho de 2019, cerca de 2 milhões de pessoas tomaram as ruas de Hong Kong depois que o governo chinês aprovou uma lei que permite, pela primeira vez, a extradição de suspeitos de crimes para a China continental. Grupos de direitos humanos alegam que a proposta poderia expor a população a julgamentos injustos e tratamento violento, além de proporcionar à China maior influência sobre Hong Kong, o que poderia ser usado para atacar ativistas e jornalistas. Declararam que o projeto de lei, portanto, delimitaria severamente os direitos democráticos de Hong Kong e mudaria o território para sempre. Os protestos foram marcados por uma escalada crescente da violência e destruição da cidade numa vontade de atacar o sistema capitalista que sustenta o continente comunista. No dia 1º de outubro, enquanto a China celebrou os 70 anos de governo do Partido Comunista, Hong Kong vivia um de seus “dias mais violentos e caóticos”. Em novembro, um deputado pró-Pequim foi esfaqueado na rua e, uma semana depois, um policial atirou em um manifestante à queima roupa, enquanto ativistas tentavam montar um bloqueio na estrada; mais tarde, no mesmo dia, ativistas pró-democracia atearam fogo em um homem a favor de Pequim.”Nós queremos liberdade, democracia, dignidade, uma vida com sentido”, ressaltou outro personagem.
O filme começa com uma cena bastante chocante: um homem de 35 anos pendurava uma uma faixa denunciando o projeto de extradição de Hong Kong na lateral do shopping Pacific Place…de repente ele começa a se desequilibrar, os bombeiros chegam e tentam segurá-lo pela camisa, mas ele cai e morre – transformando-se automaticamente em um mártir do movimento. No cartaz, ele pedia a demissão de Carrie Lam, uma das principais autoridades de Hong Kong. Ai Weiwei mostra como cidadãos comuns precisavam aprender a lutar contra balas de borracha, cassetete e bombas de gás: um manifestante menciona que grande parte da organização aconteceu nas redes sociais e foi feita por leigos. Ele chama o movimento de “uma teia de aranha de compartilhamento de ideias”. E rapidamente nos vemos envolvidos por uma visão do futuro pós-apocalíptico, apesar da filmagem datar de um passado não muito distante: barricadas em chamas, polícia atirando contra a multidão, manifestantes com máscaras revolucionárias que remete ao V de Vingança.
Os manifestantes marcharam pedindo cinco reivindicações: a retirada do projeto de lei; consideração dos protestos como algo diferente de um motim; anistia para os presos durante os protestos; investigação sobre a brutalidade policial e sufrágio universal. O filme está cheio de tomadas impressionantes, mas chamam a atenção as cenas aéreas que mostram as pessoas se reunindo nas ruas com seus guarda-chuvas. Trata-se de uma referência ao Umbrella Movement, de 2014, que começou depois que a China voltou a cumprir a promessa de oferecer eleições abertas em Hong Kong até 2017. Outra sequência que vale destacar é a dos confrontos entre manifestantes e policiais na Universidade Politécnica de Hong Kong – dizem que foi um dos episódios mais sangrentos do movimento.
É interessante notar que Weiwei lançou dois filmes em 2020 que falam sobre situações aparentemente opostas, mas complementares que nos ajudam a compreender a complexidade da sociedade chinesa e o papel do Estado sobre a vida dos cidadãos. Se em Coronation, o artista questiona o poder Chines e a impotência (ou inexistência) do indivíduo naquela sociedade, em Cockroach ele revela como a união dessas milhares de “baratas” pode tomar corpo, um corpo vigoroso, ativo, com voz e poder – mesmo que sob pauladas!
Weiwei, aliás, trabalha para humanizar esses manifestantes mostrando que muitos não eram “iniciados” na vida política, mas cansaram das decisões governamentais e pediram basta. Ele apresenta entrevistas com várias pessoas que nunca esperam se envolver: um estudante que tirou nota dez, um jovem ilustrador com talento para a mídia social ou um bancário em grande parte apolítico. Enquanto o filme Coronation se concentrava em indivíduos emaranhados em algo muito maior do que eles, Cockroach trata de um movimento de massa. Uma das manifestantes anuncia no filme “Eles não nos vêem como seres humanos. Eles nos tratam como baratas e nós tratamos eles como cachorros”.