Quem é o artista mais conhecido e controverso da América? Andy Warhol chacoalhou Nova York entre os anos 1960 e 1980 com sua arte e, em especial, sua persona. “Andy se apresenta para o mundo como um evento, mais que uma pessoa”, explica Bob Colacello, amigo do artista e editora da icônica Interview Magazine, na nova série documental que estreou semana passada na Netflix, The Andy Warhol Diaries. Inspirada pelo diário do artista publicado em 1989, dois anos depois da morte de Andy, a produção é dividida em seis partes que revelam detalhes íntimos de sua vida pessoal que por muitos anos ficou escondida por trás da máscara que o próprio artista criou. Afinal, a maior obra de arte de Andy Warhol é Andy Warhol!
Não se trata da primeira obra cinematográfica em torno de Warhol, mas The Andy Warhol Diaries revela uma nova, tocante, íntima e inspiradora versão do irreverente artista que já previa o funcionamento do mundo contemporâneo ainda nos anos 1960: “Ele nos falou especificamente que todo mundo ia ser famoso por 15 minutos. Andy iria amar o mundo de hoje…por causa do freak show que é a cultura contemporânea.”, revela Rob Lowe no documentário. Se transformar-se num produto parecia algo imoral na época, hoje esse processo é comum. “Hoje as pessoas viram marcas, e podemos atribuir a Warhol o crédito ou culpa disso”, pontua o artista Glenn Ligon.
Dirigido por Andrew Rossi (conhecido por documentários aclamados como Page One: Inside the New York Times e The First Monday in May, que se desenvolve em torno da festa de gala no Metropolitan) e produzido por Ryan Murphy (a.k.a. Glee, Halston e American Crime Story sobre Gianni Versace e OJ Simpson), The Andy Warhol Diaries traz depoimentos emocionantes e esclarecedores daqueles que conheceram, conviveram ou escreveram sobre o artista: desde artistas como Jamie Wyeth, Glenn Ligon, Fab 5 freddy e Julian Schnabel até amigos e rivais íntimos como o irmão John Warhola; os atores Debbie Harry e John Richardson; o fotógrafo Christopher Makos; os cineasta John Waters e Vincent Fremont; o empresário Michael Chow; o arquiteto Alan Wanzenberg; o músico Greg Tate; o assistente Benjamin Liu; passando por crítico e especialistas como Jeffrey Deitch, Lucy Sante, Larry Gagosian e Jessica Beck, curadora do Andy Warhol Museum em Pittsburgh.
As entrevistas são intercaladas por cenas dramatizadas ( muito comum nas novas produções documentais): imagens da silhueta de um dublê de Warhol fazendo pequenos gestos ou mexendo delicadamente nas coisas da casa são intercaladas com cenas de arquivo para ilustrar a voz do artista que foi reconstruída por meio de inteligência artificial para narrar as palavras do diário – a estratégia que poderia ficar bizarra e um tanto cafona não apenas funciona, mas, torna-se surpreendentemente comovente à medida que a série avança. Prepare-se para chorar um pouco!
Revelando diferentes momentos de altos e baixos emocionais, a série envolve o espectador por meio das maiores obsessões do artista e logo é possível perceber que conhecemos muito bem sua arte, mas sabemos pouco sobre sua vida real. Isso porque Warhol, assim como Joseph Beuys e Tunga, transformou a própria vida em arte atuando numa espécie de performance contínua, nos deixando com mais perguntas do que com respostas.
O primeiro episódio revela uma apresentação rápida da ascensão de Warhol, desde sua criação como filho de imigrantes eslavos em Pittsburgh até sua ascensão ao estrelato em Nova York, antes de se estabelecer nos anos em que o texto dos Diários começa, em 1976. Entre 1962 até 1968, ele construiu e viveu os anos loucos e mais criativos da Factory. Mas o fogo criativo chega a um ponto de ruptura decisivo depois que Warhol é baleado e quase morto por Valerie Solanas em 1968. O artista glamoroso se tornaria, a partir deste evento, mais reservado e privado. Foi nessa época também que ele se apaixonou por Jed Johnson, um designer de interiores que foi morar com ele para ajudá-lo a se curar.
Dois pontos importantes que já são pincelados nas primeiras horas da série é a homosexualidade do artista disfarçada de assexualidade e a sua dor contínua por ter consciência que não era uma pessoa considerada bela. “Andy mentiu deliberadamente para a imprensa para criar um mistério, virar um mito”, explica Bob Colacello, amigo do artista e editor da lendária Interview Magazine. Ele e outros amigos explicam que Warhol nunca “ficou dentro do armário”, mas ao mesmo tempo nunca declarou sua opção sexual…afinal, o assunto ainda era tabu na época. “Ele nunca dizia que sim e nem que bom. Esse é o paradoxo”, pontua Lucy Sante. O artista Glenn Ligon também opina sobre o assunto: “Ele era gay aceitável, não era político, não ia para as ruas ou fazia protestos. Era amigável e sensível”.
O filme ressalta, em diversos momentos, a importância de se compreender a vida pessoal e sexualidade do artista para entender sua obra, pois a intimidade e queerness está sempre presente no trabalho. O ar de domesticidade e carinho que Jed e Any cultivaram juntos na casa de Warhol no Upper East Side é o foco dos dois primeiros episódios, que vão e voltam entre a evolução de Warhol como um “artista de negócios” pintando retratos caros por encomenda e sua vida privada. “Eu comecei como um artista comercial. Quero terminar como artista de negócios. Ser bom em negócios é o tipo mais fascinante de arte”, relata o artista em seu diário. “Durante o movimento hippie, as pessoas negavam a ideia de negócios. Eles iriam dizer: ‘Dinheiro é ruim. Trabalhar é ruim’. Mas fazer dinheiro é arte, trabalhar é arte e bons negócios é a melhor arte”, continua.
O irmão gêmeo de Johnson, Jay Johnson, fala abertamente e comovente sobre o relacionamento que seu irmão (que morreu em 1996, em um acidente de avião comercial) tentou nutrir com o artista. Warhol chega a declarar que ficou corado quando os pais de Jed fizeram uma visita e agradeceram por ser tão legal com o filho. Mas logo vemos, no entanto, como o fascínio de Warhol pelas pessoas “ridículas” (nas palavras de Jed) que frequentavam o studio 54 e as sessões de fotografias de nus masculinos organizadas por Victor Hugo, o namorado de Halston, destruiu a terna relação de Jed e Any. E, assim, o coração do artista ficou aberto para Jon Gould.
Outro ponto importante apresentado nestes primeiros momentos é a transformação de Warhol, marcada por sua obsessão pelo belo e frustração por não encontrá-lo em si. “Havia este sonho, esse desejo de ser outra pessoa, de escapar”, pontua um curador. Bob Colacello é mais dramático: Andy só queria ser bonito, de qualquer forma, e ele sabia que não era. Isso era uma dor contínua”. Patrick Moore, diretor do Andy Warhol Museum, fala sobre a transformação como defesa: “Warhol podia ver beleza ao seu redor, mas não em si mesmo. Para um gay, se você não é um garanhão, pode ser uma aberração. As drag Queens nos ensinaram isso há muito tempo. Você não vai me bater porque estou montado. Vou criar uma imagem tão poderosa que você não poderá me atingir”.
Entra em cena Jon Gould, um executivo da Paramount Pictures a quem Warhol começou a enviar flores em um esforço de namoro que surpreendeu a todos ao seu redor. Colacello observa que, como Johnson, Gould também tinha um irmão gêmeo – perfeito para o “fascínio de Warhol por gêmeos, que é muito pop art. Repetição. Andy adorava repetição.”
O fato de Gould poder se passar como hétero parece interessar Rossi, o diretor, que dedica a maior parte dos episódios três e quatro a Warhol e Gould. Nas cenas e relatos, os dois pareciam viver momentos felizes – como uma viagem em grupo com amigos a Cape Cod capturada com um vídeo pessoal incrivelmente íntimo – mas a relação enquanto permanecia um mistério para aqueles ao redor. Colacello diz que Steve Rubell, confidente de Andy, declarou certa vez: ‘Jon Gould apenas dança nu para Andy, e essa é a ideia deles de sexo'”.
A tensão entre a aura assexual que Warhol projetou e a estranheza pela qual ele estava tão claramente apaixonado continua sendo foco da série à medida que ele se aventura em outros assuntos: o desenvolvimento de seu próprio robô; o trabalho como modelo; e, a colaboração de Warhol em uma série de pinturas na década de 1980 com Jean-Michel Basquiat. Larry Gagosian marca sua participação ao afirmar não ser um grande fã de colaborações. “Comercialmente, acho que eles são problemáticos. Muitas vezes, como óleo na água, simplesmente não faz sentido. Mas isso realmente clicou.” Colacello diz que Warhol “estava fascinado por Jean-Michel, tanto de forma paterna quanto homossexual”. Embora o trabalho em conjunto trouxesse a atenção de ambos os artistas (a fama de Warhol estava diminuindo na época), o relacionamento deles era complicado.Glenn Ligon diz que havia muito carinho entre os dois, apesar de Warhol ter dito “coisas horríveis sobre Basquiat.”
Nos episódios posteriores, ganha ênfase a discussão sobre epidemia do HIV/AIDS e as formas como o vírus devastou as comunidades queer em Nova York nos anos 1980 e 1990. O famoso show de Diana Ross no Central Park em 1983, que foi assolado por uma chuva torrencial bíblica, também ganha destaque. O medo da AIDS de Warhol fica claro com muitos depoimentos: “E então Calvin Klein entrou, e ele me beijou com tanta força e sua barba estava rala, e eu estava com tanto medo que estava perfurando minha espinha e sendo como uma agulha me dando AIDS.”. A série é muito poderosa quando o assunto é a epidemia que tanto marcou aquela década. Evidencia, ainda, o interesse de Warhol pela arte religiosa no final de sua vida.O filme mostra, ainda, o temor de Warhol de hospitais e tudo o que eles representam – sentimento que assombrou na cirurgia de vesícula biliar que o matou aos 58 anos.
O filme revela, ainda, que Andy teve uma formação religiosa – sua mãe o levava para a missa todos os domingos – e que essa vivência influenciou sua vida: quando ele pinta ícones da cultura pop em duas dimensões, está reproduzindo, de certa forma, as usuais pinturas das igrejas. Trata-se de uma nova versão dos mitos de uma sociedade. Em um dado momento, John Richardson ressalta que embora Andy tenha sido percebido, com alguma justiça, como um observador passivo, vale relembrar uma versão que ele escondeu de todos, exceto de seus amigos mais próximos: seu lado espiritual.“Parece surpreendente, mas existiu, e é a chave para a psique do artista. O conhecimento dessa piedade secreta inevitavelmente muda nossa percepção de um artista que enganou o mundo fazendo-o acreditar que suas únicas obsessões eram dinheiro, fama e glamour. (…) A distância que ele estabeleceu entre ele e o mundo, era, acima de tudo, uma questão de inocência, uma questão de arte.”