Aproximadamente duas toneladas de imã, mais de 300 quilômetros de fios de ferro e cerca de 300 obras. Esse é só um cheiro da magnitude da retrospectiva TUNGA: Conjunções Magnéticas, que abre dia 11 de novembro no Itaú Cultural e Instituto Tomie Ohtake.
Curada por Paulo Venancio Filho, a maior e mais completa retrospectiva do artista tem o desenho como fio condutor – apesar de ser muitas vezes reconhecido pelas esculturas e performances, o artista começou a explorar o universo das artes pelo desenho e nunca mais abandonou a mídia – e apresenta desde os primeiros trabalhos até obras mais recentes como as esculturas da série From ‘La Voie Humide‘.
Entre os três andares do Itaú que abrigam a exposição, vale dedicar um tempo para observar o cabinet de curiosité idealizado por Venancio Filho onde são apresentados alguns elementos para o público mergulhar no universo de Tunga: cadernos com textos e desenhos; projetos em cerâmica e metal para obras futuras; joais desenhadas pelo artista; as peças feitas em parceria com a Bordallo Pinheiro; e, suas primeiras experimentações e culturais apresentadas no MAM em 1974. Ainda com o objetivo de revelar o universo fantástico de Tunga, o público poderá ver, no Instituto Tomie Ohtake, uma maquete da instalação Gravitação Magnética. Criada para a 19ª Bienal de São Paulo em 1987, a obra que está sendo remontada pela primeira vez impressiona por sua monumentalidade – mede 10 metros e pesa 1000 kg – e pela poesia. Também é possível ver, nos dois espaços, desenhos da mesma série revelando uma verdadeira dança espiral de um corpo-cabeleira-magnético.
Um dos destaques é a cópia de exibição da obra Piscina, mostrada uma única vez em 1975 e de paradeiro desconhecido. Trata-se de uma das primeiras vezes que o artista usa a ideia do tripé – um símbolo que voltaria a protagonizar seu trabalho quase 40 anos depois. Vale notar, ainda, raridades como Desenhos Protuberantes e as belíssimas Morfológicas – em cerâmica, bronze, látex – e os Eixos Exógenos, esculturas de madeira feitas a partir do perfil de corpos femininos.
O Tomie Ohtake abrigará, ainda, a icônica Ão – uma projeção que mostra o interior do túnel dos morros Dois Irmãos, na qual a câmera se move em um caminho contínuo sem encontrar entrada ou saída. O vídeo em loop dilata a ideia de espaço-tempo ao sugerir uma curva infinita dentro de uma montanha, sem acesso ao exterior, provocando uma leve sensação de tontura potencializada pela repetição dos fragmentos da música Night and Day na voz de Frank Sinatra.
Apesar de se tratar de uma retrospectiva, a exposição não foi organizada de forma cronológica. E nem poderia: o pensamento de Tunga era como uma espiral eterna e contínua onde diversos elementos e conceitos, ligados aos seus interesses pela arte, literatura, matemática e filosofia, aparecem e reaparecem sem começo, meio ou fim, como propõe a atmosfera de Ão.
Para facilitar a sua visita, separamos alguns elementos e conceitos recorrentes na obra do artista. Vem com a gente!
1.O nascimento e a noção de verdade
Boa parte dos textos escritos por Tunga vem supostamente de experiências vividas pelo artista, criando uma linha tênue entre o que é realidade e o que é ficção. Há aqui uma ligação direta ao artista alemão Joseph Beuys que criou os próprios mitos que, de alguma forma, justificavam a escolha de materiais e elementos de sua obra.
Assim como Beuys, Tunga gostava de fazer mais perguntas do que dar respostas. Dizem, por exemplo, que Tunga nasceu em Palmares, em Pernambuco. Mas também corre o boato que foi no Rio de Janeiro. Sobre o mistério em relação a sua origem, o artista comenta: O primeiro pensamento que eu coloco é que precisamos acreditar em alguma coisa ou em alguém ou em um fato. O nascimento sempre tem uma testemunha escrita ou um relato. E eu devo acreditar nessas testemunhas, certo? E se eu tiver dois depoimentos contraditórios? Posso acreditar nos dois? Onde vou parar se seguir duas pistas diferentes?
Estou levando esta questão a um grau bastante consequente. Quando digo que nasci em dois lugares diferentes, estou levando estas questões a um grau bastante consequente. É paradoxal, mas pode ser uma situação interessante para se investigar. O que representa nascer duas vezes? Podemos efetivamente nascer e renascer. E este renascer não necessariamente vai significar um nascer novo, mas um nascer somado a outro anterior, e vamos continuamente renascendo em versões diversas. É expandir as experiências e a veracidade delas.
Henri Michaux tem uma frase muito bonita: Même si c’est vrai c’est faux [mesmo se for verdadeiro, é falso]. E o inverso também é válido: mesmo se for falso, é verdadeiro.
2. As gêmeas
Um dos trabalhos mais famosos de Tunga é chamado de Xifópagas Capilares. Trata-se de uma performance feita pela primeira vez em 1984, na qual duas irmãs gêmeas unidas pelos cabelos passeiam pelo espaço expositivo, entre os visitantes e alguns outros trabalhos do artista. De todos os trabalhos de Tunga, Xifópagas Capilares entre Nós é o mais emblemático da ideia da uma narrativa como obra – ela faz referência a diversos trabalhos do artista, incluindo Escalpe, Bordas, Pintura Sedativa, Protesis, Revê-la Antinomia e Les Bijoux de Mme de Sade, e os conecta e entrelaça em loop, tal qual Ão, esculpindo, escavando o próprio texto. A ideia do artista é questionar também a própria ideia de representação, subjetividade e unidade.
Tunga explica: “Tanto a história das xifópagas capilares, quanto a do nascimento partem de um mesmo quadro: As Gêmeas, do Guignard [ o pai de tunga, o poeta Gerardo Mello Mourão, era amigo do artista e as gêmeas da tela são a mãe e a tia de Tunga]. Quando olho essa imagem, eu me pergunto: ele pintou as duas juntas? Ou pintou uma de cada vez? Ou pintou uma e outra foi embora? Ele questiona a representação: o que cada uma representa e o que uma representa para a outra. E não sabemos qual veio primeiro. Aí aparece outro problema: o que antecede a unidade? Existe uma unidade bipartida ou ela é discreta [grandeza constituída por unidades distintas]? Há uma série de consequências que você pode deduzir de fatos que são reais ou apenas ficções deduzidas de fatos reais”.
3. Os cabelos e pentes
O formato do pente surge como um elemento organizador: ao passarem por seus dentes, os fios metálicos dos cabelos são separados. Elementos organizadores são como elementos aglutinadores, porém, mais sofisticados. A superfície polida do pente pode servir de espelho para os fios, que entram de um lado e só conseguem atravessar para o outro lado do pente ao deixar para trás a própria imagem.
Segundo diversas fontes, Tunga decidiu diferenciar as versões maiores de Pente – como são apresentadas no catálogo do Bard College -, que receberam o título de Troféu, das menores, chamadas Escalpe. Uma composição de pentes e fios de metal, esses trabalhos foram feitos em escalas variadas, sendo os menores exibidos nas paredes, e os maiores, no chão. Em alguns casos, juntaram-se tranças de chumbo e tacapes magnéticos, resultando em TaCaPe/ Escalpe e Êxtases.
4.Tranças e tripés
Sobre as tranças, o artista fala: “Uma das primeiras coisas que o homem fez foram tranças. E a trança é uma coisa tão misteriosa. É uma coisa tão simples. Transformar 3 em 1. Esta ideia de transformar 3 em 1 está presente nas cosmologias, no velho testamento, na ideia de santíssima trindade. Que é um pensamento abstrato, feito por uma pessoa de 15 milhões de anos, onde o pensamento abstrato ainda não existia. Este pensamento abstrato do tecer, de fazer 3 em 1, de transformar, criar e recriar a unidade está na presença das tranças, é uma coisa essencialmente feminina. E é equivalente a um mesmo momento onde o homem vai caçar e faz um tacape, um instrumento que é uma coisa massiva e agressiva para caçar um animal. Então esta dialética me fez produzir tranças de chumbo e tacapes de imã.”
Muitos trabalhos são compostos por tranças de chumbo. Aqui, Tunga cria um paradoxo entre uma coisa que é tão feminina (trança) com um material tão bruto e pesado e tipicamente masculino (chumbo).
Em muitos trabalhos é possível identificar o três que é, ao mesmo tempo, três e um: três eixos, três mechas, três meninas, três velas ou três bolas de sabão. As três chamas que viram uma de Sero te Amavi, a Trança e os questionamentos de Santo Agostinho, se comparam a força do torque no encontro das três colunas de ferro dos tripés da Trindade Tríade.
5. Imãs
A presença do imã na obra de Tunga pode ser lido como “conectivos invisíveis”, nas palavras do artista, que interagem biologicamente com o corpo do espectador. O imã em sua obra é capaz de esculpir o vazio, uma vez que ele cria um campo magnético, que por sua vez é invisível aos olhos e sensível à percepção corporal; imanta de alguma forma o corpo do espectador.
Como vemos no pavilhão dedicado a ele no Inhotim, há um aviso de restrição para pessoas portadoras de marca-passo, pois a utilização de grandes quantidades de imãs pode gerar um campo magnético capaz de alterar o funcionamento de alguns aparelhos eletrônicos. O mesmo deve acontecer com os visitantes da instalação Gravitação Magnética.
6.Tacape e redes
Tacape, uma palavra com origem tupi takapé, é uma arma construída com um pedaço de madeira, sendo uma de suas extremidades mais grossas, usada entre os indígenas para combates próximos ou rituais. Nos trabalhos com tacape de imã Tunga cria outro paradoxo, pois o que deveria ser algo bruto (tacape) é, na verdade, frágil por feito por fragmentos de imã – se for usado irá se desfaleçer!
“A forma do tacape, nascida da linha, pode ocultar outra linha como uma trança ou uma bengala. O conjunto repousa pesadamente na hipótese de um possível reagrupamento”, descreve o texto da obra no site do artista.
Outra referência indígena que aparece com frequência no trabalho de Tunga é a rede. Aqui, no entanto, o artista usa a estrutura feita para abrigar objetos cotidianos para armazenar caveiras ou recipientes de laboratório cheios de líquidos que remetem à transformação e à alquimia.
7. Transmutação e metamorfose
A ideia de transformação encontra o transitório, o desvio, o mutável, o lugar em que diferentes estados da matéria orgânica não estão definidos, encontram-se passíveis de transformação.
Este conceito era bastante caro à Tunga. O artista explica: “No ato de “fazer arte” o processo de transformação é contínuo. Não existe finitude – isso é um idealismo da arte. A palavra “vernissage” é “envernizamento”. Mas se o artista acha que vai passar um verniz no quadro e vai cristalizar aquela imagem, está enganado. Os processos persistem: a luz continua oxidando as cores da tela, por exemplo. Por isso, desde o começo eu me interessei em ver a arte como um processo de transformação contínua e que a grande transformação da matéria passava por mutações paulatinas. Nessas pequenas alterações podemos encontrar a metáfora de uma transformação maior que é contínua e peremptória dos elementos da obra.
Ou seja: é importante saber que as coisas não estão paradas. Não podemos ficar estocados em uma experiência. Elas são dinâmicas – assim como o pensar – e podem se transformar em outras experiências muitas vezes mais sutis e delicadas, mas não menos importantes do que experiências grandes.O período das grandes transformações já aconteceu no século 20 e cabe agora ao artista observar as pequenas mudanças deste tempo. É necessário encontrar macromudanças nas micromudanças. Detectar transformações graves a partir de pequenos fatos”.
Sobre este assunto, a pesquisadora Vanessa Séves Deister de Sousa reflete: “A alquimia é a fonte na qual Tunga busca não só os títulos para alguns trabalhos como também inspiração para uma escolha mais precisa de materiais que trariam seu respectivo simbolismo para o interior da obra artística. São exemplos desse tipo de operação poética os frascos de laboratório utilizados em Cooking Cristals expanded (2009), assim como a presença recorrente de materiais como cobre, chumbo, prata, ouro e enxofre que ressoam alquimia tanto no modo como são empregados, como na forma que assumem nas composições dos trabalhos”.
8. A natureza e os animais
Antônio José de Barros Carvalho e Mello Mourão foi apelidado, ainda criança de Tunga – uma referência ao Tunga penetrans, nome científico de “bicho-de-pé”. Sobre o assunto, Martha Martins afirma:“Por algum acaso familiar perdido na memória, um dia, o menino Antônio José começou a ser chamado de Tunga. Mas, não por acaso, parece ter incorporado ao longo de sua carreira algumas das inquietantes peculiaridades de seu minúsculo homônimo […] O fluxo de energia que domina suas obras, que por vezes evocam a potência biológica da natureza tropical, implica o próprio nome. Um nome em que a sonoridade já evoca por si mesma algo primitivo e confirma a existência de um pacto entre o significado do nome como atribuidor de caráter, e uma analogia em relação às ações e às marcas que se deixam neste mundo”
Tunga usa, em muitos trabalhos, animais vivos e elementos relacionados a estes. A cobra é um animal recorrente em obras de diversos tempos e geografias justamente pelo seu poder de transformação e renascimento quando troca de pele. Em A vanguarda viperina, três serpentes são sedadas com éter e trançadas juntas. A performance consiste em acompanhar o destrançar das serpentes à medida que o sedativo perde o efeito. Coincidentemente o éter que se relaciona ao aether do mesmo vazio que associamos ao espaço que a escultura clássica irá ocupar. A serpente inala o vazio, adormece e acorda trançada.
Laminadas Almas é uma investigação sobre a metamorfose e o movimento incessante das moscas e dos sapos em um ambiente laboratorial. É composta por dois portais, uma mesa,, uma forte lâmpada incandescente e um aquário repleto de girinos.Sobre o tampo da mesa algo parecido com terra está espalhado ocultando milhares de larvas de mosca que se movem escondendo-se da luz. Lâminas de laboratório se espalham entre as larvas.Dois grandes alfinetes cravados na parede, se alongam até os portais, apoiando-se neles. Sua longa superfície de alumínio polido serve de varal para dois viveiros, um de moscas e o outro de rãs.
Em conversa com a francesa Catherine Lampert, Tunga afirma: “O que eu quero dizer é que a natureza deixa de existir assim que alguém a observa, a testemunha, ou a formula. Mas ela pode ser coletada e reorganizada como uma força diferente. A presença da natureza na cultura é paradoxalmente similar a um modelo no qual a vegetação cresce e rompe a ilusão europeia de permanência de uma obra feita, por exemplo, de mármore. (…) Ela me ajudou a perceber a existência de uma dinâmica que poderia permitir uma nova inscrição a ser aplicada à arte. É a ideia de se procurar desvendar a maneira que aprendemos das coisas que são estáticas e no entanto, ao mesmo tempo, representam transição. Existe, além disso, uma coincidência incrível com a arte moderna, que também nos ajudou a entender que a estabilidade das formas, cores e estruturas apresentadas por artistas é, na maior parte das vezes, sujeita ao espectador, e a seu olhar e seus humores, vítreo ou espiritual; sujeita à pessoa no extremo receptor da obra”.
9.O corpo e o nu
Desde a Vênus de Willendorf, criada para representar a fertilidade, até performances atuais como a do Chico Fernandes que rendeu uma multa ao artista – o nu é um tema discutido desde o nascimento das artes visuais. Para Tunga, despir-se era um ato necessário para encontrar nossa essência.
O artista explica: “As pessoas se vestem para se fazerem presentes. E, a rigor, você precisa despi-las para mostrar o que elas realmente são. Mas, mesmo nuas, elas podem estar vestidas. Há aqui a metáfora do nu como forma de representação dele mesmo. É preciso despir o nu. Trazer o nu – uma imagem clássica – à sua intimidade para que ele apareça naquilo que ele é e não naquilo que ele representa. Nós somos cobertos de cascas e representações que construímos de nós mesmos. E normalmente tentamos nos fazer representar por coisas que não são a nossa essência. Por isso, é importante buscar o strip-tease das coisas para ir além daquilo que está representado. E confrontar o nu de nós mesmos com o nu do mundo”.
É sobre criar continuidade entre o mundo que a gente constrói e o mundo que a gente vive enquanto está construindo o que constrói. Em entrevista dada a Fabio Cypriano, Tunga fala sobre a questão do corpo em seus trabalhos: “Na arte contemporânea, interessam as experiências com o corpo em sua totalidade, não é apenas o olhar, mas o tato, o olfato, a presença, tudo aquilo que vai servir de constitutivo do sujeito. A linguagem corpórea é um dos momentos da formação dos sentidos do sujeito. Mesmo que ela não esteja codificada como a visual-verbal, ela pode ser tão bem elaborada quanto […] E a performance é como colocar a obra à disposição da experiência”