Em tempos de reavaliação o que significa ser brasileiro e redescobrimento de novas narrativas para a construção da ideia de nação, ver a exposição Luiz Zerbini: a mesma história nunca é a mesma, no MASP, faz-se mais que necessário. Como o próprio nome indica, a exposição curada por Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu, e Guilherme Giufrida, curador assistente, com cerca de 50 trabalhos, tomou forma a partir de fatos/imagens da história do Brasil.
As principais e mais impressionantes pinturas têm grandes dimensões, mas não trata-se de um exibicionismo do artista. Vale lembrar que eram também monumentais as tradicionais pinturas de temas históricos – gênero que sempre andou conectado com o Estado e o poder oficial. Zerbini, entretanto, retoma narrativas apagadas ou distorcidas das histórias do Brasil para reconstruí-las a partir de novas imagens, perspectivas e protagonistas. O artista desconstrói, assim, narrativas oficiais para recompor os eventos escolhidos deslocando o ponto de vista, incluindo outros sujeitos e suas percepções de mundo – sejam eles humanos, vegetais ou animais.
O ponto de partida é a própria invasão portuguesa: A primeira missa, comissionada para a coletiva Histórias mestiças, realizada em 2014 no Instituto Tomie, nasce a partir de uma análise crítica da cena de Primeira missa no Brasil, pintada em 1860 por Victor Meirelles (1832-1903). Se na pintura “original” os indígenas aparecem animalizados nas laterais da pintura diante do processo civilizatório europeu que marcaria a construção daquela nação; na cena de Zerbini uma índia mulher, e bastante poderosa, é posicionada no centro da tela. Com seu olhar penetrante e desafiador, ela é retirada de uma foto tirada por Walter Garbe em 1909.
Do lado direito, vemos o navegador português, o infante Dom Henrique, apropriado de uma pintura de Nuno Gonçalves, posicionado abaixo da mulher e com o chapéu envolvido por uma jiboia. A serpente é um animal que aparece com frequência na cultura indígena, representando transformação. Ele se ajoelha e tem as mãos atadas em um terço e uma corda. Diferente da obra de Meirelles, a missa aparece em terceiro plano, às margens da tela.
O artista questiona, aqui, o imaginário construído em torno do encontro entre os invasores e indígenas no início do processo colonial brasileiro. A imposição religiosa, vale lembrar, foi uma das mais poderosas formas de massacre cultural. O Brasil é, assim, reinventado e este gesto nos leva a acreditar numa futura transformação. Deste mesmo processo, nascerem as quatro telas de grande dimensão mais recentes do artista: Massacre de Haximu e Paisagem inútil, de 2020; Rio das Mortes e Canudos não se rendeu, de 2021.
Em Massacre de Haximu, por exemplo, o artista retoma uma chacina que ocorreu em terras Yanomami em 1993. “Haximu” é o nome da comunidade que vivia na fronteira do Brasil com a Venezuela e foi massacrada por garimpeiros em busca de ouro. Ao menos dois indígenas foram assassinados pelos garimpeiros, incluindo idosos e crianças. Na tela de Zerbini a natureza colorida e exuberante – típica de seu trabalho – contrasta com o genocidio violento.
Para realizar a obra, o artista reuniu inúmeras notícias de jornal desses últimos 30 anos de luta Yanomami contra garimpeiros, além de pesquisar em redes de comunicadores locais, em especial o ISA ( Instituto Sócio Ambiental) e a Hutukara – importantes armas de informação contra o garimpo ilegal.Durante a execução do trabalho, o principal responsável pelo Massacre de Haximu, Pedro Emiliano Garcia, foi condenado a 20 anos de prisão. Zerbini relembra a importância de figurar e revelar não só as resistências, como também os inimigos dos povos indígenas.
Já em Canudos não se rendeu, de 2021, o artista resgata uma fotografia de Flávio Barros feita durante a Guerra de Canudos, que aconteceu entre 1896 e 1897. O artista refuta a ideia de homogeneização da multidão e oferece personalidades únicas a cada um de seus personagens – transformando cada coadjuvante em protagonista. Transforma o típico cenário árido da caatinga ao inserir corpos exuberantemente pigmentados, mantos ricamente ornamentados e uma vegetação cheia de personalidade. Mistura referências do sertão e do cangaço com grafismos afro-indígenas, que cobram os tecidos e troncos na paisagem.
Ao fundo, na contramão da suposta submissão dos jagunços, mostra-se a força daquele coletivo, misturado a outros personagens de variados tempos. Numa espécie de diálogo com Operários de Tarsila do Amaral, a pintura revela expressões faciais e posturas corporais que representam uma luta diária diante de um Estado violento, que costuma agir em defesa dos grandes proprietários de terras.
Os casarios na montanha ao fundo remetem ao morro da Providência, no Rio de Janeiro, onde se instalaram parte das tropas que voltaram de Canudos depois da guerra. Considerada a primeira favela do Brasil, o bairro tem sua origem vinculada à destruição de Canudos, onde existia um morro chamado Favela por conta da farta presença de uma planta de mesmo nome no local.
Sobre o mundo vegetal, aliás, Zerbini tem muito a dizer. Um exímio observador de tudo o que está em sua volta, o artista é apaixonado por botânica, o que fica evidente nas telas e também nas monotipias espalhadas pela exposição: cor, forma e textura – tudo se transforma e floresce (quase que literalmente) nos trabalhos. Um dos nomes que defendeu a pintura figurativa na lendária exposição Como vai você Geração 80?, Zerbini já explorou uma variedade de técnicas, passando por experimentações em colagem, impressão, fotografia, vídeo e instalação – mas sempre falando de pintura.
A expografia-obra é um espetáculo à parte: apesar de fiel defensor da figuração, Zerbini sempre se interessou pelos padrões e abstratos da arquitetura e cidade. Transporta suas pesquisas da tela para a colagem de filmes antigos de fotografia e, depois, para o espaço. Na exposição do Masp, ele se arma do mesmo sistema de transformação ao trabalhar com as estruturas de madeira típicas das exposições desenhadas por Lina Bo Bardi. Está esperando o que para ver ao vivo?