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Livros AQA: No tremor do mundo

Publicação reúne textos inéditos de múltiplas vozes que argumentam diferentes visões e previsões durante a pandemia da Covid-19

por Beta Germano
No tremor do mundo
No tremor do mundo

“A “desautomatização” do modo de ver passa justamente por aí: reconhecer e questionar as origens estruturais dos nossos pensamentos e ações ( …) Em vez de buscar um novo normal, vamos abolir de uma vez o termo “normal” e o mantra moderno de que, em um futuro hipotético, as coisas vão melhorar. Temos que trabalhar ativamente para que presenças e vozes plurais sejam ouvidas nos seus próprios termos, respeitando a complexidade de suas diferenças e não apenas anexá-las às estruturas vigentes para que o bonde do capitalismo global siga andando sem delongas”, escreveu Fernanda Brenner exclusivamente para o livro No tremor do mundo, organizado por Luisa Duarte e Victor Gorgulho, editado pela Cobogó.

De um lado, uma curadora que passa a pandemia isolada no conforto de seu lar em Higienópolis assume que precisa mudar a forma de olhar, escutar e agir no mundo. Do outro, a ativista que não teve chance de ficar um minuto em casa, na Maré, e trabalha na linha de frente para amenizar ( se é que isso é possível) os danos de uma comunidade que vive uma pandemia sem qualquer estrutura ou apoio: Eliane Sousa Silva, fundadora da ONG Rede da Maré, levantou verbas para comprar alimentos, itens de higiene pessoal e proteção para os médicos da comunidade. Monitora o número de casos de perto e ainda deu um jeito de contribuir para que algumas mulheres tivessem uma fonte de renda durante esse caos sanitário, político e moral que vivemos. Ela já está acostumada a lutar pelo mínimo que o Estado não é capaz ou não quer assegurar  – aquele “normal” que deve ser banido, como na fala de Brenner. E o que Eliane vê de positivo no meio disso tudo? “Consegui chegar em pessoas que eu queria há muito tempo para falar sobre o trabalho da Redes para doações. Só conseguimos mobilizar recursos para 13 mil famílias de uma vez com uma cesta básica decente porque cheguei nessas pessoas”. Pessoas como Fernanda, como Luísa, como Victor, como eu, como você ou qualquer brasileiro que pode contribuir e cobrar mudanças. 

Se o pesadelo que vivemos no Brasil – não só por causa da pandemia, mas pela forma indescritível e inacreditável que os governantes estão lidando com esse e muitos outros problemas – tem algo de bom é o livro No tremor do mundo. Com a proposta de reunir textos inéditos e entrevistas de intelectuais de diversas áreas sobre a pandemia do coronavírus, a publicação não é bem sucedida por trazer soluções, mas por promover diálogos e levantar perguntas que já eram pertinentes antes muito antes do isolamento social, mas que com ele ganharam mais atenção de todos. Um ambientalista, um neurologista, um psicanalista, uma historiadora, um filósofo, uma especialista em estudos de vigilância, uma crítica literária e algumas curadoras – múltiplas vozes são ouvidas aqui. Se o vírus ataca para além dos pulmões e nos provou seu efeito irradiador ( atingindo, dependendo do caso, o cérebro , o sistema linfático ou o rim) que ataca o corpo inteiro, Luisa e Victor propõem que a produção de conhecimento sobre as consequências dele também se espalhe pelo corpo social e com efeitos em diversas dimensões – econômica, social, biológica, psicológica, filosófica e ecológica. Por um lado, busca construir memórias dessa época singularíssima para o futuro e, por outro, partilhar imaginações para esse mesmo futuro, procurando, quem sabe, desenhar desde já transformações para o mundo porvir. “É preciso entender que existem várias pandemias dentro de uma maior. Por isso, nossa proposta é criar intercâmbios e fazer mais atravessamentos”, explica a organizadora. E, como anunciou o pensador Édouard Glissant, “compreendemos melhor o mundo quando trememos com ele, pois o mundo treme em todas as direções”. 

Entre a eclética seleção de autores, podemos detectar preocupações em comum. Dentre elas, vale destacar três vértices: o colapso ecológico eminente e o capitalismo predatório , ressaltado por Ailton Krenak, Sidarta Ribeiro, Bernardo Esteves; a preocupante colonização algorítmica do mundo  – vivemos imersos ( agora mais) em telas, reféns dos algoritmos e, nós ( nossos dados) viramos produtos – ; e, a necessidade de um deslocamento do olhar num Brasil ainda pautado pela necropolítica e pelo racismo estrutural. “Nós brancos precisamos entender o Brasil e, para isso, temos que nos colocar em posição de escuta. Na arte contemporânea já vivemos esse movimento de saída desses marcos colonizados para outras possibilidades, mas isso precisa se expandir. Esse Brasil visto de diversos ângulos é algo importante que buscamos imprimir no livro”, ressalta Luisa Duarte. “Outro assunto que vem à luz é a importância do Brasil da ciência, da pesquisa pública e do sistema único de saúde. A ideia é entender o que precisa ficar e o que devemos mudar”, completa.

Mas o vírus Sars-Cov-2 não atacou somente o Brasil. Muito pelo contrário.  Pedro Duarte nos presenteia com um texto didático e bonito ao trazer, também, o que os filósofos estão produzindo a respeito do momento, desde os sonhadores aos mais pessimistas. Entre eles está Paul B. Preciado que nos alerta para as técnicas de poder e vigilância que se exercem em nossos corpos a partir de um código de saúde instaurado naquilo que Foucault chamou de biopolítica. O ideal de imunização traz consigo o perigoso ideal de impureza” ressalta Duarte. Preciado foi contaminado e parece que quando saiu do hospital perguntou em quais condições valeria a pena viver. Um clichê, verdade. Mas ao invés de gastar tinta tentando encontrar uma resposta existencial, escreveu uma carta de amor. Duarte conclui com toda razão: “De uma tacada só, Preciado abriu um viés diferente do resto do debate: não procurou reiterar um conceito que já possuía; não se referiu só a uma dimensão coletiva impessoal; não deixou a pergunta pelo futuro das condições em que valeria a pena voltar a viver apagar o desejo presente: escrever uma carta de amor. Talvez não haja futuro possível que valha a pena se não formos capazes de escrever uma carta de amor”.   

Luisa Duarte / Foto: Vicente de Paulo
Luisa Duarte / Foto: Vicente de Paulo
Victor Gorgulho / Foto: João Pedro Schiavo
Victor Gorgulho / Foto: João Pedro Schiavo

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