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Artista Aposta: Thatiana Cardoso

A performer explora tensões de estranheza e familiaridade entre objetos do cotidiano e o universo da mulher, onde violência e afeto se confundem

por Giovana Nacca
Thatiana Cardoso
Frame da videoperformance Acúmulo Rosa (2016)

Logo nos seus primeiros contatos com a faculdade de Licenciatura em Artes Visuais , Thatiana Cardoso teve um grande choque: a arte contemporânea não era nada daquilo que ela esperava. Ironicamente, a performance foi a linguagem que ela mais odiou conhecer, mas hoje é com ela que a artista trabalha. “Se isso é arte, eu não quero ser artista” – ela pensou na época. A decepção foi tão grande que a fez jogar fora toda a sua produção feita até aquele momento. 

Parece que a arte a invadiu impetuosamente, sem pedir permissão, e tirou uma trava de seus olhos, fazendo-a perceber-se em um campo minado de repressões que até então não eram notadas. “Eu entendi que arte não era sobre o que estava lá fora, era o cotidiano, o que estava aqui dentro e por isso era tão assustador” – comenta. Ela explica que parte desse medo tinha uma origem precisa: ela cresceu num ambiente adestrador baseado na tradição religiosa que reduzia as individualidades das mulheres à vida de donas de casa, mães e esposas. “Às vezes o cotidiano tinha a ver com violência, tinha a ver com coisas que a gente preferia não ver” – conclui.  

Depois de digerir tudo aquilo que havia acessado, Thatiana desistiu da área de docência e tomou coragem para se assumir artista. Na mochila, ela carregava todos os elementos que a haviam assombrado, para que assim pudesse transformar seu dia-a-dia e o que a cercava em investigação poética. 

Thatiana Cardoso
Corpo Estranho, 2021

Hoje Thatiana percebe como todas as experiências culminaram na sua atual produção. Até mesmo sua formação anterior, em Tecnologia de Alimentos, influencia indiretamente seu atual trabalho: “eu percebi que, por meio dos alimentos, eu estava acessando o corpo”.

Ela que ouviu tantas vezes que o “corpo da mulher é biologicamente mais adequado para o serviço doméstico”, levou isso ao pé-da-letra e passou a investigar as semelhanças que os objetos de cozinha e o corpo humano podem ter. Através do zoom da câmera, esses objetos perdem suas identidades e evocam um mistério, transitando entre a estética carnal e artificial.

Suas obras são intrinsecamente pautadas na dubiedade, na traição das imagens como um reflexo das relações humanas e as violências invisíveis. Em algumas delas, o bote é revelado no próprio título, como na performance A medida da ilusão, em que a artista mede a circunferência do dedo anelar do espectador e entrega um cordão com o tamanho correspondente. Em outras, você é seduzido pela elegância e refinamento da imagem que, muitos aos poucos, passa se difundir em tortura. É o caso da vídeo-performance Fitilho, na qual uma supostamente inofensiva fita rosa e brilhante te envolve ao longo de quase 15 minutos até começar a cortar a boca da artista. Ou ainda em  Acúmulo rosa, onde Thatiana é literalmente sufocada pela cor que representa toda a construção de feminilidade. 

Já na obra em forma de baleiro, chamada Era para ser doce, é recheada de pequenos bilhetinhos contendo cerca de 700 mensagens que a artista coletou em suas conversas com homens que se passavam por soldados estadunidenses em operação em países como o Afeganistão e Síria buscando seduzi-la para depois aplicar o famoso “golpe do amor”, quando roubam uma fortuna.  

A este ponto já está evidente que o caráter ambíguo de tensão não se restringe ao universo rosa criado por Tathiana, mas é um reflexo cru de uma realidade extremamente comum da nossa sociedade. Encontramos essa atmosfera particular diariamente no nosso país onde crimes de feminicídio são comumente justificados “por amor” e até um carinhoso abraço na amante pode se transformar em um mata-leão. Ou ainda, onde um galerista, supostamente em prol da profissão, pronuncia sem medo que “não representa artistas que são mães” como resposta para a ampla, coerente e arrebatadora produção de Thatiana Cardoso. 

Talvez, inclusive, este seja o ato mais político de Thatiana: sua tentativa de adentrar o mercado de arte. Desde sua luta quando mais jovem para conseguir bolsa e para equilibrar aulas particulares de inglês que paguem sua faculdade até sua decisão de ser artista e mulher que infiltra uma enxurrada de cor-de-rosa no sistema artístico.

Um dia, ela teve medo da arte contemporânea. Quem hoje tem medo da arte de Thatiana Cardoso?

Thatiana Cardoso
Frame da videoperformance Acúmulo Rosa (2016)

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