Logo nos seus primeiros contatos com a faculdade de Licenciatura em Artes Visuais , Thatiana Cardoso teve um grande choque: a arte contemporânea não era nada daquilo que ela esperava. Ironicamente, a performance foi a linguagem que ela mais odiou conhecer, mas hoje é com ela que a artista trabalha. “Se isso é arte, eu não quero ser artista” – ela pensou na época. A decepção foi tão grande que a fez jogar fora toda a sua produção feita até aquele momento.
Parece que a arte a invadiu impetuosamente, sem pedir permissão, e tirou uma trava de seus olhos, fazendo-a perceber-se em um campo minado de repressões que até então não eram notadas. “Eu entendi que arte não era sobre o que estava lá fora, era o cotidiano, o que estava aqui dentro e por isso era tão assustador” – comenta. Ela explica que parte desse medo tinha uma origem precisa: ela cresceu num ambiente adestrador baseado na tradição religiosa que reduzia as individualidades das mulheres à vida de donas de casa, mães e esposas. “Às vezes o cotidiano tinha a ver com violência, tinha a ver com coisas que a gente preferia não ver” – conclui.
Depois de digerir tudo aquilo que havia acessado, Thatiana desistiu da área de docência e tomou coragem para se assumir artista. Na mochila, ela carregava todos os elementos que a haviam assombrado, para que assim pudesse transformar seu dia-a-dia e o que a cercava em investigação poética.
Hoje Thatiana percebe como todas as experiências culminaram na sua atual produção. Até mesmo sua formação anterior, em Tecnologia de Alimentos, influencia indiretamente seu atual trabalho: “eu percebi que, por meio dos alimentos, eu estava acessando o corpo”.
Ela que ouviu tantas vezes que o “corpo da mulher é biologicamente mais adequado para o serviço doméstico”, levou isso ao pé-da-letra e passou a investigar as semelhanças que os objetos de cozinha e o corpo humano podem ter. Através do zoom da câmera, esses objetos perdem suas identidades e evocam um mistério, transitando entre a estética carnal e artificial.
Suas obras são intrinsecamente pautadas na dubiedade, na traição das imagens como um reflexo das relações humanas e as violências invisíveis. Em algumas delas, o bote é revelado no próprio título, como na performance A medida da ilusão, em que a artista mede a circunferência do dedo anelar do espectador e entrega um cordão com o tamanho correspondente. Em outras, você é seduzido pela elegância e refinamento da imagem que, muitos aos poucos, passa se difundir em tortura. É o caso da vídeo-performance Fitilho, na qual uma supostamente inofensiva fita rosa e brilhante te envolve ao longo de quase 15 minutos até começar a cortar a boca da artista. Ou ainda em Acúmulo rosa, onde Thatiana é literalmente sufocada pela cor que representa toda a construção de feminilidade.
Já na obra em forma de baleiro, chamada Era para ser doce, é recheada de pequenos bilhetinhos contendo cerca de 700 mensagens que a artista coletou em suas conversas com homens que se passavam por soldados estadunidenses em operação em países como o Afeganistão e Síria buscando seduzi-la para depois aplicar o famoso “golpe do amor”, quando roubam uma fortuna.
A este ponto já está evidente que o caráter ambíguo de tensão não se restringe ao universo rosa criado por Tathiana, mas é um reflexo cru de uma realidade extremamente comum da nossa sociedade. Encontramos essa atmosfera particular diariamente no nosso país onde crimes de feminicídio são comumente justificados “por amor” e até um carinhoso abraço na amante pode se transformar em um mata-leão. Ou ainda, onde um galerista, supostamente em prol da profissão, pronuncia sem medo que “não representa artistas que são mães” como resposta para a ampla, coerente e arrebatadora produção de Thatiana Cardoso.
Talvez, inclusive, este seja o ato mais político de Thatiana: sua tentativa de adentrar o mercado de arte. Desde sua luta quando mais jovem para conseguir bolsa e para equilibrar aulas particulares de inglês que paguem sua faculdade até sua decisão de ser artista e mulher que infiltra uma enxurrada de cor-de-rosa no sistema artístico.
Um dia, ela teve medo da arte contemporânea. Quem hoje tem medo da arte de Thatiana Cardoso?