Cerca de 500 mil norte-americanos morreram de overdose entre 1999 e 2019. O motivo do surto, diferente do que muitos pensam, não é a ascensão de um poderoso cartel de traficantes de drogas. Bom, pelo menos não um cartel no formato tradicional de traficantes que abriga nossas imaginação. Os bad boys aqui são, na verdade, os membros da família Sackler – fundadores de duas poderosas empresas farmacêuticas norte-americanas, a Purdue Pharma e Mundipharma, e grandes colecionadores de arte conhecidos pela filantropia.
Dopesick, série da HBO indicada a ganhar 14 Emmys, revela a história real das ações judiciais enfrentadas pela Purdue Pharma e membros da família Sackler relacionadas à prescrição excessiva de medicamentos farmacêuticos viciantes. A produção mostra desde a criação e inserção de um medicamento no mercado até o processo elaborado contra a família e a empresa. A ideia? Provar que os Sacklers sabiam do perigo da droga e, mesmo assim, forjaram pesquisas para convencer médicos do país inteiro a receitar o opióide “milagroso”.
Explicamos: Em 1996, a Purdue Pharma lançou um remédio chamado OxyContin, cuja propaganda prometia curar todo tipo de dor. O problema é que esse remédio contém opioide altamente viciante em sua composição chamado oxicodona – substância inventada em 1916, e vendida como Eukodal, que foi retirada do mercado em 1990 justamente por causar problemas de dependência. Todo médico sabia disso e nenhum iria prescrever a nova droga se não fosse uma propaganda enganosa criada pela empresa e membros da FDA (Food and Drug Administration), a agência federal de regulamentação de medicamentos do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Eles diziam que, apesar do opioide ser sim viciante, o remédio tinha uma tecnologia de liberar a substância aos poucos e de forma lenta no organismo evitando picos de reação e, consequentemente, pacientes com tendências abusivas. O slogan do remédio era “menos de 1% viciante”. Mas essa não era a realidade.
Somada à informação falsa, a empresa construiu um intenso programa de incentivo aos profissionais que precrevessam a droga: presentes, jantares, viagens – todo tipo de presente cercava venderores e médicos por décadas. O resultado? Uma epidemia mortal: muitos norte-americanos que começaram a tomar OxyContin para dores leves, como dor de cabeça ou um acidente de trabalho, acabaram ficando viciados e, quando não conseguiam o medicamento e não suportavam a dor da abstinência, acabavam migrando para outras drogas como a heroína. Outros aumentaram tanto a dose do próprio OxyContin que morreram de overdose de um remédio totalmente legal.
Um pequeno histórico
Arthur, Mortimer e Raymond Sackler, os três filhos de imigrantes judeus da Galícia e da Polônia, cresceram no Brooklyn na década de 1930. Todos os três irmãos foram para a faculdade de medicina e trabalharam juntos no Centro Psiquiátrico Creedmoor em Queens.
Eles foram frequentemente citados como pioneiros em técnicas de medicação que acabaram com a prática comum de lobotomias, e também foram considerados os primeiros a lutar pela integração racial dos bancos de sangue. Em 1952, os irmãos compraram uma pequena empresa farmacêutica, a Purdue-Frederick, que mais tarde se transformaria na Purdue Pharma.
Raymond e Mortimer dirigiam a Purdue, enquanto Arthur, o irmão mais velho, tornou-se pioneiro na publicidade médica. Ele concebeu campanhas apelando diretamente aos médicos e recrutou profissionais respeitados para endossar os produtos da Purdue. E é aí que tudo vira do avesso e a indústria que, na teoria, foi criada para ajudar as pessoas revela-se mais um braço ganancioso e imoral do mundo capitalista.
E o que isso tem a ver com arte?
O tema poderia ter passado despercebido pela turma artsy, se não fosse um pequendo detalhe: Um dos maiores colecionadores de arte de sua geração, Arthur Sackler doou a maioria de suas coleções para museus ao redor do mundo. Outros membros da família Sackler seguiram o espírito filantrópico do patriarca e também doaram quantias consideráveis para museus no mundo inteiro. Conclusão: o nome “Sackler” aparece repetitivamente entre os homenageados em muitas instituições, e alguns museus têm, inclusive, salas nobres com seus nomes na porta.
Uma das primeiras cenas do filme, inclusive, se desenvolve durante um jantar no qual a família discutia os avanços da nova droga e sua campanha de marketing. A grande mesa está cercada por obras clássicas e, no final, a câmera faz um zoom out mostrando que eles não estão numa casa cheia de obras e sim no próprio Metropolitan Museum, mais especificamente na “Sackler Wing”– uma área do museu dedicada a condecorar a tão generosa família.
O problema é que agora o mundo sabe de onde vem esse tão apreciado dinheiro e não pega bem para os museus usá-lo sem uma visão crítica. Entretanto, ainda assim as instituições fechavam os olhos para os escândalos dos processos e muito provavelmente seguiriam agradecendo os gestos filantrópicos se não fosse a artistas Nan Goldin. A aclamada fotógrafa foi uma das vítimas que ficou viciada no analgésico e, indignada com o histórico da família e a indiferença dos museus, criou um grupo chamado P.A.I.N. (Prescription Addiction Intervention Now) com o objetivo de protestar contra a crise de opióides nos EUA na frente dos museus.
Goldin e sua turma conseguiram convencer alguns museus a não aceitar o dinheiro da família e o nome “Sackler” foi retirado das salas do Metropolitan, Louvre, National Portrait Gallery, Tate, Guggenheim, entre outros.
Vale notar a cena em que Richard Sackler, interpretado Michael Stuhlbarg, comenta sobre o gosto peculiar de seu tio para arte asiática. Não à toa, o The Smithsonian Institution tinha uma galeria inteira dedicada à coleção asiática de Arthur Sackler. A Sackler Gallery foi inaugurada em 1987, depois que Arthur M. Sackler doou US$ 50 milhões em arte e artefatos asiáticos para o Smithsonian, e mais US$ 4 milhões para financiar um museu que abrigaria tudo. Depois dos escandalos, o museu resolveu “renovar o branding” do espaço, mas a coleção segue disponível para visitação. A história nos faz questionar não só o funcionamento do sistema farmacêutico, mas de onde vem o dinheiro que sustenta o mercado de arte!
Em tempo: Além de Dopesick, a família Sackler também foi retratada no documentário Crime of the Century na HBO e o livro Empire of Pain, de Patrick Radden Keefe.