A compreensão do trabalho de Lynette Yiadom-Boaky é fundamental para entender como um movimento global por igualdade precisa caminhar junto à produção de uma nova ética global a partir da proposta de uma nova estética. Primeira artista afro-caribenha a ter uma exposição solo no Tate e a ser indicada para o Turner Prize no país, Yiadom-Boaky é uma artista fundamental para o movimento que alguns chamam de “Renascimento da pintura negra”, que vai além, vale notar, da substituição de protagonistas brancos por sujeitos negros na pintura. Fly in League with the Night reúne, até o dia 26 de fevereiro, no Tate Britain, mais de 70 trabalhos produzidos desde o início da carreira da artista até os dias de hoje, revelando os motivos pelos quais a artista figura como um marco conceitual deste movimento ético e estético.
Há um debate histórico em torno do conceito de hegemonia que tem a pintura como seu principal eixo, pois ela exerce, afinal, um papel fundamental na construção da racionalidade ocidental. É possível dizer que um passo definitivo na elaboração da modernidade é dado quando o termo “artista” surge no Ocidente em 1552, cunhado por Vasari em sua publicação icônica Vida de Artista, onde também é mencionado em caráter inédito, o termo “Renascimento”. Neste livro o autor transfere os poderes sobrenaturais associados anteriormente a Deus para uma suposta genialidade dos mestres da pintura de seu tempo – Rafael, Donatello, Michelangelo, entre outros, todos homens brancos vivendo em Veneza e Florença.
A principal prática desses artistas consistia em criar uma estética em que o rosto de Jesus, oriundo do Oriente Médio – filho sacrificado de Deus segundo o catolicismo -, fosse retratado a imagem e semelhança dos comerciantes de Veneza e Florença. Esta operação ocorre menos de cem anos depois da emissão da bula papal, na qual a igreja católica menciona pela primeira vez o termo “negro” com o objetivo de citar pessoas e territórios a serem saqueados por destoarem de seu projeto espiritual. As bulas Dum Diversas (1455) e a Romanus Pontifex (1452) dão início, então, ao tráfico atlântico de pessoas escravizadas – pela proximidade geográfica, portanto étnica, sabemos hoje que Jesus se assemelhava muito mais a estas pessoas do que aos comerciantes do território que hoje conhecemos como Itália. Desta forma, a arte em seu surgimento enquanto produto do artista, substitui a imagem da figura central no catolicismo, um sujeito pertencente ao grupo explorado, pela figura do explorador. Nesta operação a pintura funda a estética necropolítica que vai ser contestada futuramente por grupos como o Black Lives Matters, e por isso torna-se o bem com maior valor agregado no surgimento do comércio global, fundando assim o próprio mercado de arte.
A produção de Yiadom-Boakye transforma esta dinâmica uma vez que a desafia desde sua própria lógica. Para além de trazer personagens negros para o centro da pintura, a artista subverte a teoria básica da pintura baseada em luz e sombra, onde há um favorecimento de tons mais claros, especialmente em personagens humanos centrais. Há, aqui também, uma centralização da figura humana, entretanto seus personagens são quase sempre afro-descendentes. O fundo projeta-se como um espaço atemporal geralmente escuro e difícil de definir. Ela constrói, desta forma, uma dinâmica entre os sujeitos e os espaços de representação na qual o olhar do expectador é atraído para a atmosfera íntima dos personagens, de modo a encará-los como seres humanos dotados de emoção e sensibilidade.
Todos os personagens retratados são fictícios, boa parte deles são homens e, com alguma frequência, é possível imaginar uma narrativa homo-afetiva ou, ao menos, anti-patriarcal. Este é o caso de First , de 2003, uma das primeiras obras da artista e Any Number of Preocupations, 2010, colocados como dípticos na primeira sala da exposição. Nestas telas podemos ver o tradicional fundo escuro e duas figuras negras, talvez até um pouco andróginas, com roupões vermelhos. É importante acrescentar que Yiadom-Boakye não usa a cor preta e o que vemos é um fundo produzido por um tom de azul escuríssimo entrecortado por outras cores.
De qualquer forma é interessante acrescentar que além de pintura trata-se da produção de uma poeta onde as imagens exercem a função de enunciar o que está para além das palavras. Desta maneira, a escolha da artista por colocar obras em dípticos evoca também a produção de um diálogo entre os personagens das obras, seus títulos e o espectador. Esta escolha promove uma dinâmica mais fluida que necessariamente desloca o observador enquanto figura hegemônica e o posiciona mais como um componente no jogo de tensões entre as obras. Esta escolha estética atinge a lógica a partir da qual a relação entre obra e espectador é definida a partir de dinâmicas unidirecionais. Este díptico em especial coloca a audiência enquanto objeto observado pelos personagens, de modo que um deles está construído numa situação onde o corpo não figura como objeto de desejo, mas objeto desejante. Podemos entender, aqui, que o discurso decolonial da escritora-pintora vai além da mera representação de corpos afro-relacionados, mas evoca temas mais profundos e subverte hierarquias.
Outro tópico importante nesta grande exposição é a relação entre estes personagens e os animais retratados. Nesta mesma sala, uma tela muito simpática recebe o público: Black Allegiance to the Cunning (Aliança Negra a Astúcia), de, 2018, trás um rapaz sorridente sentado numa cadeira sob a qual repousa uma raposa. Desta forma, há uma narrativa sobre o instinto de sobrevivência, onde o personagem é representado numa posição de controle sobre o animal e a própria sociedade, figuraria como a zona selvagem, em relação a estas figuras. Este não é o único momento em que os animais integram a iconografia de Fly in League with the Night: eles ajudam, em momentos estratégicos, a compor a complexidade subjetiva das narrativas, num movimento de evocar um macro-ambiente fora do controle da racionalidade.
Tal dinâmica corrobora com o conceito de Paul Gilroy sobre a “brutalidade racial na racionalidade Ocidental”, de modo a abordar de maneira complexa tal sistema. Este é o caso da obra Accopained to the Kindness, de 2012, onde o personagem principal olha para uma arara vermelha com um afeto, correspondido pelo animal. Ao longo das mais de 70 obras há diversos trabalhos onde figuram animais, produzindo os mais diversos sentidos nas pintura. Um outro exemplo igualmente impactante é The Stygian Silk, de 2019, onde animais selvagens que se assemelham a lobos ou panteras figuram como fundo da tela, quase que fundidos ao personagem principal. É possível ver uma relação harmônica entre o que a audiência interpreta como um perigo eminente e o personagem principal.
Ainda que não sejam maioria no universo simbólico de Fly in League with the Night , as mulheres retratadas na retrospectiva são diversas e apresentam uma qualidade mais solar do que os homens. Entretanto, é preciso dizer que nenhuma delas está rendida ao olhar da audiência, de maneira a parecerem estar sempre dentro de uma agenda muito própria – o que parece ser uma opção consciente da artista. Em uma das primeiras imagens femininas da exposição podemos ver o que parece ser o diálogo entre uma criança e uma mulher mais velha. Nessa obra, a pessoa mais velha sustenta uma atitude de aparente seriedade, de maneira a ocultar um sorriso. To Improvise a Mountain, de 2018, nos aponta para uma complexa e divertida situação, onde a criança coça a cabeça parecendo estar tentando enganar a mãe/responsável de algo que é percebido e recebido com certo afeto, mas principalmente com determinada austeridade de cunho pedagógico. Este quadro levanta alguns temas centrais da teoria de pintura como, por exemplo, a pose da mulher mais velha que se assemelha às musas românticas, entretanto sua expressão contraria esta referência clássica ao denotar autoridade, que é trazida pelo contexto. Há ainda um Segundo nível que relação que é a centralização da narrativa na relação afetiva de duas mulheres afro-descendentes, o que subverte a trajetória ocidental de temáticas em pintura. Principalmente, pelo afeto evocado na obra, acrescentado de certa austeridade.
Por fim, a evocação de meninas afrodescendentes é, sem dúvida, uma escolha de repertório que reafirma o lugar histórico neste movimento que promove na pintura uma reintegração de posse quanto ao tema da humanidade. É possível verificar esta tendência em o Condor and the Mole, de 2019. Nesta obra, assim como na anterior, a audiência figura como observador passivo, ignorado pelas personagens. Ao considerar que Henry Tate era uma figura inglesa cuja fortuna foi construída com a exploração de cana de açúcar. Neste sentido o Tate Britain figurou até momentos recentes, como um espaço central de exposição do que então se entendia como ‘alta pintura’ ( não importando o quão hegemônico este termo pareça). A chegada de Lynette ao Tate é um marco simbólico importante para nosso tempo, não apenas porque as obras propõem um sentimento de estranhamento , de forma a questionar o lugar da audiência. Mas principalmente porque, entre as dezenas de trabalhos da artista, o público é levado a visitar narrativas subjetivas desconhecidas, e assumir um lugar de alteridade – desta forma a artista revisita o conceito de pessoa. Desta forma , Fly in League with the Night determina uma mudança fundamental acerca da representação no maior acervo ético e estético de um das últimas sociedades monárquicas da Europa.