A partir de amanhã, dia 24 de março, Carmézia Emiliano inaugura sua primeira exposição individual em um museu, no MASP. A indígena macuxi e natural de Normandia, Roraima, se descobriu artista na década de 1990, quando se mudou para Bela Vista e foi convidada, pelo poeta e grande articulador cultural Eliakin Rufino a visitar, pela primeira vez, uma exposição de arte. Diante das obras que viu, de artistas também roraimenses, Carmézia concluiu que se tivesse tintas, telas e pincéis também pintaria. Rufino foi, então, seu padrinho na missão artística e deu a Emiliano seus primeiros materiais de pintura.
Hoje a Emiliano, ao lado de Jaider Esbell, é a principal representante de seu estado no circuito de arte e, com a inauguração de sua primeira mostra panorâmica em uma das maiores instituições de arte brasileira, ela rompe com um silenciamento de cerca de três décadas. Amanda Carneiro, que assina a curadoria, comenta que a exposição acontece “antes tarde do que mais tarde ainda”. Ela ressalta: “O que a gente espera é que isso seja um mote para as pessoas entenderem que não só a Carmézia como qualquer outro artista indígena merece um espaço sob esse sol”.
A produção da artista tem se estabelecido em um lugar bastante significativo por dar visibilidade à cultura e tradições macuxis. Na própria exposição, a representação do Damurida – um prato tradicional macuxi, que geralmente se come com beiju de mandioca e consiste em um caldo quente feito com uma proteína animal, pimentas variadas, cariru, tucupi negro – é bastante recorrente.
O título da mostra também aponta para o mito bastante tradicional, o da árvore da vida, chamada Wazaká, que teria originado o Monte Roraima, localizado na fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana. A história, que é citada em algumas das telas da artista, possui mais de uma versão. Mas, em suma, a lenda conta que Macunaíma – personagem macuxi que inspirou o clássico literário de Mário de Andrade – e seus irmãos passavam muita fome até descobrirem a Wazaká, árvore gigante, que tocava os céus e tinha os mais diversos frutos. Em determinado momento, um deles não se contenta apenas com os alimentos que caem no chão e, em sua ganância, decide cortar a árvore. O toco que sobra, seria o Monte Roraima, e a copa caída para o Norte, para o lado da Venezuela, justificaria a diversidade de frutas silvestres da região.
Num geral, essas cenas retratadas são referências visuais que provêm das memórias de Carmézia e constituem naturalmente seu repertório. Sendo assim, é importante ressaltar que sua exposição não é uma tradução literal de seu povo, mas que, assim como qualquer outra produção de arte, possui sua subjetividade individual.
Por exemplo, em contexto geral, na tela Aprendendo a artista retrata o impacto das sociedades ocidentais sobre as sociedades indígenas. A cena apresenta uma escola indígena, onde uma professora ensina português. No seu entorno, há diversas outras figuras praticando técnicas artesanais e aprendendo, para além da estrutura escolar, tanto os saberes das mãos, quanto filosóficos por meio do diálogo e contação de histórias. Mas no âmbito individual da artista, vale notar, porém, que o tratamento bidimensional e a ausência de perspectiva, característicos de sua produção, colocam ambas situações em paralelo e distantes de uma comparação de superioridade.
Vivemos em uma cultura de num país estruturado na desvalorização social e monetária de diversas profissões, mas certamente, na base desse sistema estão os profissionais dedicados aos fazeres manuais. Sob esta lógica, o artesão é menor do que o artista e uma pessoa que não foi letrada, mas que presta serviços domésticos é considerada menor do que o advogado que a emprega e que não sabe fazer os mesmos serviços na própria casa. A partir de obras como a citada acima e outras, Emiliano nos provoca uma reflexão sobre as hierarquias dos saberes.
Para a curadora, os trabalhos de Carmézia, se trazidos para o amplo contexto da arte contemporânea, também nos alertam sobre questões ecológicas, como reflexo de um povo que sofreu demasiadamente com o garimpo ilegal e resistiu em terras cobiçadas para o processo de desvastação: “Os macuxis são dotados de forte consciência ecológica, dá pra ver isso nos quadros. Eles sempre falam muito sobre uma relação harmoniosa entre as figuras humanas e da natureza. Esse tipo de relação ensina a qualquer pessoa que a observa que esses territórios indígenas, na verdade, protegem a todos nós, independente de onde a gente viva.”
É preciso dizer ainda, que o corpo de trabalho da artista é comumente definido sob a categoria artística chamada Naif, uma palavra de origem francesa, traduzida como “ingênuo” e que se refere à artistas autodidatas. O termo vem sido apontado nos últimos anos como, no mínimo, insuficiente por abrigar trabalhos tão distintos entre si, e que geralmente são reunidos por terem em comum apenas a autoria de artistas não-brancos. Amanda Carneiro ressalta que apesar disso, a classificação “foi muito importante para incluir diversos artistas, antes marginalizados no sistema. A gente pode citar, por exemplo, as Bienais Naifs feitas pelo Sesc que revelaram vários nomes, inclusive da Carmézia”.
Ao que tudo indica, esse deve ser mais uma caso que merece uma revisão histórica sem desvalidar o trabalho dos críticos, pesquisadores e instituições feito até então. O fato é que se faz urgente a reavaliação de termos reducionistas e preconceituosos, além de entender que autodidatismo não é sinônimo de falta de pesquisa e artistas, como a Carmézia Emiliano, não têm nada de ingênuos.
Serviço
Carmézia Emiliano: a árvore da vida
Local: MASP
Endereço: Avenida Paulista, 1578 – Bela Vista, São Paulo – SP
Data: De 24 de março a 11 de junho de 2023
Funcionamento: Terças, das 10h às 20h (entrada até as 19h); quarta a domingo, das 10h às 18h (entrada até as 17h).
Ingresso: R$30 – R$60, terças grátis e agendamento online obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos