Depois de 100 anos…qual é a relevância da Semana de Arte Moderna, evento que aconteceu em fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo ? O modernismo no Brasil começou naquele ano? O modernismo no Brasil se resumiu aos artistas que estavam naquele? Quem está acompanhando o nosso podcast que discute o modernismo, já sabe que não. Existiram muitos artistas, músicos e escritores modernistas espalhados pelo Brasil muito antes e para além do lendário evento de 22. E mais: os pensamentos e reflexões ligados ao movimento não ficaram restritos à São Paulo. Muito pelo contrário, Para entender como esse movimento artístico se instaurou no Brasil é essencial olhar artistas que não trabalhavam na metrópole – pense, por exemplo, em Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro. Se é difícil definir quando e onde o movimento começou ou terminou – muitos trabalhos da Tarsila do Amaral que viraram símbolos do movimento foram pintados depois – parece pertinente nomear uma exposição que discute a Semana de 22 como Moderno onde? Moderno quando?. Curada por Aracy A. Amaral e Regina Teixeira de Barros, a exposição que abriu no MAM SP essa semana é uma oportunidade única para compreender como as mudanças naquele início de século influenciaram e inspiraram artistas.
Como o próprio nome da mostra indica, Aracy e Regina propõe ampliar o território e o marco temporal do que é entendido como “modernismo brasileiro”, selecionando artitas que trabalharam desde a virada do século – período marcado por transformações culturais, artísticas e tecnológicas – até a implementação do Estado Novo por Getúlio Vargas, em 1937. “A Semana de 22 faz parte de um amplo e descontínuo processo que a extrapola, tanto temporal quanto espacialmente. A ideia é mostrar como o Brasil se desenvolveu a partir de 1900 e como os artistas visuais brasileiros acompanham essas transformações políticas, econômicas, sociais e culturais. Selecionamos artistas que expressavam o que esse desenvolvimento significava, que tinham um olhar curioso para o Brasil rural, para os novos centros urbanos, para as descobertas e novas tecnologias – caso da fotografia e arquitetura. Até explodir na Semana de 22 e no realismo da década de 30”, explica Aracy em entrevista exclusiva ao ARTEQUEACONTECE. Os núcleos urbanos começavam a se alterar em regiões como Amazonas e Pará, o neoclassicismo e ecletismo emergia na arquitetura do Rio de Janeiro, a abertura de novas avenidas transformava a vida urbana e, em São Paulo, fábricas surgiam com a chegada de imigrantes europeus. “Nossa preocupação era mostrar justamente a diversidade desse movimento, desse momento. A exposição revela como as manifestações modernas aconteceram em diferentes lugares e tempos”, completa Regina.
A seleção termina em 1937, pois as curadoras achavam importante incluir, para representar o modernismo, os artistas da década de 30 que tinham uma preocupação social, como Cândido Portinari, Lívio Abramo e o próprio Di Cavalcanti. “Essa preocupação social é muito marcante a partir de 1929, com a quebra da bolsa, e achamos importante mostrar essa vertente do modernismo. Escolhemos 1937 pois é um marco político interessante e nos permitiu incluir esses artistas sociais”, explica Regina. Entre os destaques da mostra estão Café de Portinari; Operário, Vila Operária e Meninas de fábrica , de Lívio Abramo.
“Até que ponto era moderno? Era moderno mesmo? Ou era uma tentativa de modernidade que depois só vai se configurar no Realismo da década de 30 ou dos anos 1940? Outro marco que poderíamos ter definido era 1951, pois a primeira Bienal de São Paulo trouxe a escola suíça, o que impactou os artistas de forma avassaladora, começando, ali, uma uma busca pela abstração geométrica no Brasil – o que estava a par com a industrialização que se afirmava entre nós. Eu tenho a certeza hoje que nós somos importadores de tendência, como um país colonizado. Houve um trânsito de informações sobre as vanguardas européias que foram nutrindo o meio artístico – como as viagens de Oswald de Andrade, da família Gomide e de críticos à Paris ou com a exposição organizada por Vicente do Rego Monteiro em 1930 ou da chegada de artistas como Lasar Segall . Mas não era um trânsito denso como no Uruguai e Argentina. A atualização em relação à arte europeia chegou de uma forma muito mais firme, forte e constante a partir da primeira Bienal de São Paulo. Além das Bienais, vale lembrar também que esse período também foi marcado pela abertura do MAM de São Paulo e MAM do Rio de Janeiro – tudo isso vai alterar por completo o fluxo de informação dos artistas. Mas nós preferimos parar em 1937, concentrando a pesquisa numa geração que trabalhava pré Segunda Guerra Mundial e que não era influenciada tão fortemente pela arte internacional”, ressalta Aracy.
A mostra pode, então, ser dividida em três grandes núcleos: os trabalhos feitos por artistas modernos pré Semana de 22 – não deixe de conferir Torso de Menina e Autorretrato de Eliseu Visconti; O violeiro, de Almeida Júnior; e, Pintor no ateliê, Paris, França, de Artur Timóteo da Costa. É um tanto emocionante ver reunidas algumas das peças que estiveram de fato no festival organizado no Teatro Municipal de São Paulo: trabalhos de Anita Malfatti, Victor Brecheret e Di Cavalcanti nos dão um gostinho do que foi, naquele momento, a tentativa de traduzir a ideia de brasilidade em uma imagem. Não perca, então, O farol e Mulher de cabelos verdes, de Anita; Fragmento: Templo da minha raça e Cabeça de Cristo, de Brecheret; Mulher diante do Espelho, Vicente do Rego Monteiro; e Amigos, de Di Cavalcanti – artista que é representado, nesta exposição, por obras de três distintos momentos da carreira marcando os principais momentos da mostra: antes, durante e depois da Semana de 22.
O público certamente não passará despercebido por Eu vi o mundo…ele começava em Recife, de Cícero Dias – a tela de 15 metros de largura causou polêmica em 1926 por retratar cenas inspiradas em Recife e no interior de Pernambuco. Exibido no Salão Nacional de Belas Artes, este painel foi mutilado em 3 metros, em uma de suas extremidades por conter nus frontais considerados escandalosos para a época. Impossível não se emocionar, ainda, diante de Perfil de Zulmira ou Paisagem Brasileira, de Lasar Segall; dos retratos que Tarsila do Amaral fez de Oswald de Andrade e Mário Pedrosa; ou da tela Os noivos, de Guignard.
“Outra obra que vale olhar com cuidado é Café, de Portinari. É uma pintura muito poética e visionária: fala sobre o homem da terra, sobre a dignificação ou amplificação do homem rural brasileiro, que passou a ser visto sob uma nova ótica”, pontua Aracy. A exposição se preocupa, também, em ressaltar os avanços tecnológicos e experimentalismo que surgiam na época: Os trinta Valérios e Fachada do Teatro Municipal, de Valério Vieira revelam progressos na fotografia; as maquetes, desenhos e pinturas de Gregori Warchavchik, Flavio de Carvalho e Victor Dubugras exemplificam as transformações causadas pelas novas tecnologias na construção e arquitetura moderna.”, pontua Aracy.
“A Semana de 22 virou um marco que precisa ser repensado. O centenário é uma oportunidade para analisarmos a construção desse marco porque na época o evento não teve uma grande repercussão. Dez anos depois também não havia nenhuma ressonância. O pensamento em torno da Semana começa apenas 20 anos depois! É importante entender que ela não foi uma geração espontânea em São Paulo, um divisor de águas entre o velho e o novo. Foi um processo que se manifestou em todo país acompanhando mudanças impactantes da arquitetura, na renovação urbanística das cidades, na música e nos grupos literários que se formaram de norte a sul do país. Gilberto Freyre, por exemplo, negava a importância da semana: ele desenvolveu a questão do regionalismo que também foi fundamental para a modernidade no Brasil”, conclui Regina.