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Anita Malfatti e as artistas mulheres na virada do século

Entenda as inovações de Anita Malfatti e confira a importância das mulheres na narrativa sobre a modernidade brasileira com Ana Paula Simioni

por Julia

Como vimos nos nossos encontros passados, o modernismo no Brasil não começa com a Semana de 22, mas uma série de fatores e conjunturas, projetos e acasos, levam o evento a se tornar uma espécie de marco simbólico da modernidade no Brasil.

Uma espécie de festival de arte, música e literatura, a semana foi realizada em São Paulo e, posteriormente, passou a ser considerada um divisor de águas na história da cultura brasileira. O evento – organizado por um grupo de intelectuais e artistas por ocasião do Centenário da Independência – declara o rompimento com o tradicionalismo cultural associado às correntes anteriores, supostamente anacrônicas, como a arte acadêmica.

Retrato de Mario de Andrade, de 1922, por Anita Malfatti
Retrato de Mario de Andrade, de 1922, por Anita Malfatti

Mas como os artistas e intelectuais chegaram a esse projeto? Alguns encontros são importantes para entendermos essa história. Em 1912, o poeta e crítico Oswald de Andrade – personagem sobre quem falaremos nos próximos capítulos – retorna da Europa, muito impactado pelo Manifesto Futurista de Filippo Marinetti, publicado em 1909. Oswald considera que a literatura brasileira estava atrasada, presa ao parnasianismo. Já em 1913, Lasar Segall, pintor lituano, realizou “a primeira exposição de pintura não acadêmica em nosso país”, nas palavras do próprio Mário de Andrade, personagem importante para nossa conversa de hoje. 

Em 1917, Anita Malfatti participou de um concurso promovido por Monteiro Lobato com um tema folclórico: o Saci. A obra já não tinha agradado o autor, mas despertou o interesse de artistas da época. Logo depois, ela abriu a exposição que seria crucial para entender a formação do grupo. Sua individual foi o estopim para a união dos artistas e a criação da chamada Semana de Arte Moderna. 

Muito diferente de seus pares, Anita Malfatti foi estudar na Alemanha, primeiro, e depois nos Estados Unidos. Filha de um engenheiro italiano e mãe professora de origem alemã e norte-americana, Anita nasceu em 1889, no início da nova república. Depois que seu pai faleceu, sua mãe passou a dar aulas particulares de idiomas e também aulas de desenho e pintura para poder sustentar a família – é aí que Anita começa a acompanhar a mãe, tendo seu primeiro contato com a arte. Inclusive, ainda na adolescência, a artista já preocupava-se com seu caminho, dizendo “Minha maior preocupação até a idade de 12 e 13 anos, foi saber se eu tinha ou não talento…”. De início, pensou que seguiria como poeta, mas uma experiência surpreendente a levou à cor a à pintura.

Anitta contou que com 13 anos, sentindo-se perdida e sem rumo na vida, resolvera se submeter a uma experiência de sofrer a sensação absorvente da morte, achando que essa forte emoção serviria para encontrar uma resposta. Morando perto da Barra Funda, um dia saiu de casa e deitou-se nos trilhos do trem, descrevendo uma sensação maluca causada pelo barulho e pelo deslocamento do ar, causando nela uma sensação de delírio, vendo cores e mais cores que ela desejaria fixar para sempre. Daí em diante, escolheu dedicar-se à pintura. 

O fato de não pertencer a uma família abastada que pudesse pagar por seus estudos em Paris não impediu Anita de buscar formação fora do país. Com a ajuda de um tio, Jorge Krug, conseguiu mudar-se para Alemanha em 1910, ingressando na Academia de Belas Artes de Berlim. Ali, ela testemunha o amadurecimento do expressionismo: ficava tonta visitando museus e mais museus, vendo exposições marcantes de artistas que queriam desafiar a hegemonia do impressionismo francês, buscando um novo estilo e estética universalizante e, ao mesmo tempo, local, verdadeira e geneticamente alemã. Longe de Paris, Malfatti seria a primeira dos artistas brasileiros – e a única antes da Primeira Guerra Mundial – a absorver essa nova corrente artística. 

Primeiro, estudou com Fritz Burger, um artista hoje bastante esquecido, mas que na época a introduziu aos estudos de cor, de harmonia, de misturas – deixando os problemas do desenho de lado. Apesar de sua produção inicial ainda ser muito tradicional, as pinceladas de Anita já se tornam mais soltas e manchadas, vibrantes, como se vê em A Floresta, de 1912. 

A Floresta, de 1912 , por Anita Malfatti
A Floresta, de 1912 , por Anita Malfatti

Buscando se aproximar ainda mais do expressionismo, a artista passou a estudar com Lovis Corinth, um dos mais importantes nomes do expressionismo alemão. Vindo de Munique para Berlim, Corinth era, desde 1911, o presidente da Secessão Berlinense. O mestre havia sofrido um derrame no final daquele ano, o que o afetou profundamente como artista, sua produção. De acordo com a autora Marta Rossetti Batista, a pintura de Corinth passa a ser vibrante e vigorosa, mais livre, de pinceladas rápidas e urgentes – o artista havia sido resistente aos expressionistas e, agora, aproximava-se deles. 

Em janeiro de 1913, Anita visita uma mostra de Corinth, rememorando o choque de ver os grandes quadros, com quilos de tinta, de todas as cores, uma confusão, um arrebatamento. Dentro de uma semana, estava estudando com Lovis Corinth, na academia que ele havia fundado. Pela primeira vez, ela realmente pintava, deixando o desenho de lado, paleta na mão direita e pincel na mão esquerda, trabalhando a tinta a óleo e, assim, começando seus primeiros retratos. Um deles, inclusive, foi exibido de maneira anônima e premiado na mostra da secessão  na primavera.

De volta a São Paulo, em 1914, ela ainda pensava em viajar para estudar, mas continuava sem condições financeiras para isso. Assim, tentou uma bolsa do governo de São Paulo, que se chamava “Pensionato Artístico”. Como mostra de aptidão, organizou sua primeira exposição no dia 23 de maio de 1914. Com 33 obras, incluindo gravuras e pinturas a óleo, aquarelas e desenhos, montou a mostra num lugar improvisado, no centro da cidade, chamando-a de “Exposição de Estudos de Pintura Anita Malfatti”. O senador José de Freitas Valle era o responsável pela concessão das bolsas e visitou o programa, mas não gostou das obras. A mãe de Anita perguntou a ele se ele havia gostado de um dos retratos, ao que Freitas Valle respondeu: “Minha Senhora, não se ofenda se sou franco. Mas este quadro está crivado de erros, o desenho é fraco e é um carnaval de cores. Valor artístico não tem nenhum”. Anita não se fez de rogada e escreveu em seu diário: “que pena tenho destes artistas que dependem do Freitas Valle para seu pão!”. Obviamente Anita não ia receber a bolsa de estudos. 

O rochedo, 1915, de Anita Malfatti
O rochedo, 1915, de Anita Malfatti
O Farol, de 1915, por Anita Malfatti
O Farol, de 1915, por Anita Malfatti

A mostra teve pouca repercussão, com alguns artigos apenas, que apontavam uma arte adiantada, ou até um descompasso com a pintura feminina. Assim, mais uma vez, o tio Jorge Krug ajudou Anita a se mudar para os EUA. Em 1915, Malfatti estava em Nova York. Naquele verão de 1915, ela ouviu falar de Homer Boss, artista conceituado à época, que havia fundado uma escola própria, a Independent School of Art.  Ele e seus alunos e amigos visitam a costa do Maine para pintar ao ar livre as cenas litorâneas e as paisagens montanhosas. Anita se junta ao grupo, alocado na pequena ilha de Monhegan, pintando no sol e na chuva, livre e naturalmente. Ali ela produz algumas de suas obras mais importantes, incluindo A Ventania e O Farol, além de O Rochedo. Nas palavras do diário da própria artista: “era a festa da forma e era a festa da cor”.

Nu Cubista Nº 1, de 1915, por Anita Malfatti
Nu Cubista Nº 1, de 1915, por Anita Malfatti

A convivência com Boss lhe deu, ainda, a chance de conhecer outros nomes importantes, com destaque para ninguém mais ninguém menos que Marcel Duchamp! Aos 28 anos o francês já havia se tornado uma semi-celebridade em Nova York, depois do escândalo em torno da sua pintura Nu descendo a escada. É nesse período também que pinta as belíssimas obras Nu cubista, Cabeça Verde, e uma das mais importantes obras de sua carreira, “Uma Estudante”. Anita se identifica com seus retratados, colocando-se nas angulações e enquadramentos estranhos, nas deformidades. – uma expressão psicológica e simbólica para o sofrimento humano. 

A estudante, de 1915, por Anita Malfatti
A estudante, de 1915, por Anita Malfatti

Em meados de 1916 a artista voltou ao Brasil, mas até sua família achava suas pinturas dantescas, e o assunto se tornou tabu no ambiente doméstico – até o tio que bancou as viagens e estudos, demonstrou-se desapontado. Ao mesmo tempo, ela sabia que as críticas não tinham fundamento e ficava triste com a falta de compreensão de seu trabalho. Mas, ao mesmo tempo, a cena paulistana começava a mostrar sinais de inquietação. Em 1915 Oswald de Andrade já havia escrito o ensaio “Em prol de uma pintura nacional”, e a Revista do Brasil seria fundada em SP em 1916, com o objetivo de formar uma consciência nacionalista. Neste ano, a artista pinta Tropical, superando esse nacionalismo de outra maneira, celebrando as cores, as frutas e a identidade brasileira por outros símbolos. 

Tropical, de 1916, por Anita Malfatti
Tropical, de 1916, por Anita Malfatti

Anita participou de uma espécie de concurso promovido por Monteiro Lobato, uma investigação sobre o Saci, pintando uma tela de mesmo nome sobre o tema. Em outubro de 1917 os trabalhos foram apresentados em um salão na Líbero Badaró. Mas Lobato não gosta do resultado e escreve que a artista “pinta no estilo dos ismos, e que não poderia criticar porque não entendia esses gêneros…”

Foi nessa ocasião, entretanto, que Anita chamou atenção de outros artistas, como Di Cavalcanti. Eles foram até a casa de Anita para ver as obras “aberrantes” que ela praticamente escondia e ficaram extremamente entusiasmados pela nova arte da pintora, estimulando-a a fazer uma exposição no final de 1917. Anita selecionou obras produzidas depois de 1914, ou seja, no seu período nos Estados Unidos, e os mais recentes, feitos no Brasil. Eram 53 obras no total, na “Exposição de pintura moderna Anita Malfatti”, além de algumas obras de colegas americanos para evidenciar que ela não era a única pintando daquela forma! Ela já incorporava procedimentos básicos da arte moderna: a relação dinâmica e tensa entre a figura e fundo; a pincelada livre que valoriza os detalhes da superfície; os tons fortes e não convencionais; as sugestões de luz; e uma liberdade de composição.

O Homem Amarelo, de 1917, por Anita Malfatti
O Homem Amarelo, de 1917, por Anita Malfatti

A exposição teve bastante destaque de mídia, com o Estadão escrevendo que havia muita concorrência de visitação na mostra, com muitas famílias conhecidas assinando o livro de registro e a artista sendo chamada de fenômeno. Outros artistas e pessoas do meio que mais tarde integrariam o grupo idealizador da Semana de 22 também elogiaram o trabalho: Guilherme de Almeida, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Mário de Andrade e até Tarsila visitaram a mostra. A última escreveria em carta futura que um bom pintor considerado avançado para o meio, chamado Wasth Rodrigues, lamentava não saber pintar como Anita! 

Porém, os ventos mudaram de direção quando Monteiro Lobato escreveu uma peça crítica para o Estado de S.Paulo, em 20 de dezembro de 1917, com o título “A propósito da exposição Malfatti”, com uma posição bem virulenta em relação às obras. Lobato dizia que as telas vendidas foram devolvidas, algumas quase foram destruídas a bengaladas. 

“Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. (…) Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno daqueles sóis imorredouros. A outra espécie é formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência: são frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento. Embora eles se dêem como novos precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a mistificação. De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo mistificação pura.”

Depois, atacou quem apoiou a mostra, como Oswald de Andrade. 

Anita ficou profundamente magoada com esse episódio, mas como estopim, a crítica de lobato ensejou jovens escritores e poetas a reunirem-se ao redor da artista, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, escrevendo respostas em outros trabalhos defendendo Malfatti e desconsiderando Lobato, desqualificado como crítico de arte. “Não posso falar pelos meus companheiros de então”, indica Mário de Andrade, “mas eu, pessoalmente, devo a revelação do novo e a convicção da revolta a ela e à força de seus quadros”. Em sentido semelhante,  Di Cavalcanti escreve: “A exposição de Anita foi a revelação de algo mais novo do que o impressionismo”. 

Surpresa pela repercussão, Anita continuou contando com o apoio de Di, de Yan de Almeida Prado, e dos dois Andrade, sendo que Mário visitou a mostra diversas vezes, afirmando: “Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente do escândalo que tomara a cidade, nós, três ou quatro, delirávamos em êxtase diante de quadros que se chamavam O Homem Amarelo, A Mulher de Cabelos Verdes

A mulher de cabelos verdes, de 1916, por Anita Malfatti
A mulher de cabelos verdes, de 1916, por Anita Malfatti

Reza a lenda que em sua primeira visita, ria tanto que Anita, já enraivecida, fora tirar satisfação. Na segunda vez, apresentou-se devidamente à artista, contando estar impressionado com os quadros. Oswald, por sua vez, estimulou-se pela polêmica com Lobato, fortalecendo o apoio a Anita. No início de 1918, com a mostra pouco visitada, Anita encerrou sua empreitada, e no dia seguinte, fora publicada a (curta) defesa de Oswald, no Jornal do Comércio, afirmando que era digna de aplauso a artista que se arriscara a expor uma pintura tão moderna. Oswald termina dizendo que as telas de Anita desafiavam o preconceito fotográfico que geralmente permeia a pintura, e que sua arte era a negação da cópia!

Anita, justificadamente sensível com o ocorrido, se recolheu, vendo as alunas lhe abandonarem, seu trabalho caindo em ostracismo, as vendas minguando. Viveu três anos longos e isolados, que desestruturaram toda sua verve expressionista, voltando-se à arte acadêmica – um movimento que nos deixa perplexos até hoje, mas que é absolutamente compreensível ao mesmo tempo. Segundo Mario, a vida artística de Anita foi um drama pesado, desses que o isolamento apaga para sempre. 

A trágica sina da artista foi um disparador para a formação do grupo “moderno”, que eventualmente organizaria a Semana de Arte Moderna 4 anos depois.  O grupo começou a se articular em torno da comemoração do centenário da independência, ainda em 1921, com uma agitação premonitória que levaria à famosa Semana de 22, assunto do nosso próximo episódio.

O Japonês, de 1915, por Anita Malfatti
O Japonês, de 1915, por Anita Malfatti

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