O que significa uma pilha de balas no canto de um museu? Amor e morte. A doçura e o amargor da vida. E o que significa uma ilha de tênis numa campanha publicitária? Aparentemente nada disso ou pior: apenas a comemoração do 60º aniversário da franquia X-Men!
O mundo da arte está perplexo depois que a marca de calçados Kith lançou uma campanha que usa um trabalho do artista cubano Felix Gonzalez-Torres como referência visual, mas a marca não anunciou nenhuma ligação com a obra e, realmente, não haveria alguma conexão conceitual.
A publicidade, provocada com uma imagem de sapatos empilhados em um canto, é uma colaboração com a Marvel e a ASICS e marca o lançamento de sete novas versões do modelo GEL-LYTE III que visam homenagear os personagens dos X-Men. Quem conhece História da Arte e vê a pilha de tênis faz uma relação imediata com os chamados “candy works” do artista conhecido por abordar temas como a crise do HIV nos anos 1980.
Fundada por Ronnie Fieg em 2011, a Kith é uma loja com sede em Nova York, conhecida pelo streetwear e por atrair compradores como Jay-z e Notorious Big. Com com 2 unidades localizadas no Brooklyn e Manhattan, projetadas em parceria com a Snarkitecture, a Kith tem uma linha própria de roupas e comercializa marcas como Nike, Timberland, Stampd, Asics, New Balance, Native Footwear, Adidas e outras.
O nome “Kith” é derivado do termo ‘Kith and Kin’; termo arcaico que quer dizer ‘família e amigos’, conceito que é representado no slogan da marca ‘Just Us’.
Mas qual a relação dos mutantes com as obras de Gonzalez-Torres?
Entenda a série e dê sua opinião.
Untitled (Portrait of Ross in L.A.)
Untitled (Portrait of Ross in L.A.), de 1991, faz parte da série chamada de “candy works” do artista cubano Felix Gonzalez-Torres. Esta sobras são compostas de uma pilha de balas embrulhadas por papéis coloridos, geralmente dispostas no canto do espaço expositivo, que são exibidas como “suprimento infinito” – o que significa que podem ser reabastecidas à medida que os espectadores as retiram e as consomem.
As obras da série têm dimensões conforme sua instalação, mas precisam ter um “peso ideal” ligado ao peso médio do corpo masculino – 175 pounds (cerca de cerca de 79 kg). Isso porque este trabalho, como outras “candy works” , é uma espécie de retrato.
O personagem seria, nesse caso, o namorado de Gonzalez-Torres, Ross Laycock, que morreu de complicações relacionadas à AIDS no ano em que a instalação foi montada pela primeira vez, na Luhring Augustine Hetzler Gallery, em Los Angeles. Neste caso, a quantidade de balas precisa corresponder ao peso de Laycock.
Muitos interpretam esse trabalho como uma ação do público ligada ao processo do próprio virus: à medida que cada pessoa pega um doce, ela age como o vírus esgotando o corpo de Ross, levando-o pedaço por pedaço até que não haja mais nada.
Mas o trabalho não fala só sobre doença ou o esgotamento. Vale lembrar que o doce, por si só, é uma representação do amor e este casal estava unido, sofrendo juntos por uma doença cruel. Apesar do doce e o corpo ser “engolido” até desaparecer, o amor permanece.
Outras obras da mesma série
No mesmo ano, o artista fez a obra Untitled (Placebo) com balas azuis – desta vez espalhadas pelo chão formando uma espécie de tapete. A ideia, aqui era mostrar a quantidade enorme de comprimidos que os pacientes que convivem com o vírus HIV tomam durante a vida. E mais: independentemente da quantidade de remédio que você toma, a morte realmente não se importa com quem você é ou que status você tem, e qualquer um pode ter que lidar com a doença.
A maioria das obras de Gonzalez-Torres abordam a crise do HIV e a morte – afinal, o próprio artista sofreu por complicações ligadas ao vírus e faleceu em 1996. Mas nem todas as 19 “candy works” feitas por ele falam sobre este tema.
Em “Untitled” (USA Today), de 1990, com doces vermelhos, brancos e azuis, ele faz alusão a um jornal de mesmo nome. Já “Untitled” (Retrato de Marcel Brient ), um agrupamento de balas com embalagens azuis, seria um retrato de um colecionador francês que comprou a obra de Gonzalez-Torres.
A imagem-teaser da Kith causou discussões na internet: a equipe de marketing KITH teria conhecido a obra de González-Torres ? Obviamente sim, mas parece que ninguém pesquisou sobre o importante contexto histórico, emocional, político e conceitual do trabalho. Como a designer Elizabeth Goodspeed comentou no seu Twitter, trata-se de um “humor inepto ou analfabetismo da mídia, na melhor das hipóteses!”