Um olhar crítico sobre a representação negra no cinema, televisão, teatro e literatura. Talvez esse seja o eixo que melhor une as novas instalações e projetos abertos hoje, dia 28 de maio, em Inhotim.
O movimento conhecido como Harlem Renaissance abrangia, ainda nos anos 1920, poesia e prosa, pintura e escultura, jazz e swing, ópera e dança – unindo diversas formas de arte para a construção real do que significava ser negro na América, aquilo que o escritor Langston Hughes considerou ser a “expressão de nossos ‘eus’ individuais de pele escura”, bem como uma nova militância na afirmação de seus direitos civis e políticos.
Alguns anos depois, Hughes receberia uma carta do brasileiro Abdias Nascimento que, por aqui, questionava a ausência da cultura e corpos negros no teatro nacional – ele queria o direito de levar os textos de Hughes para os palcos do Brasil por meio de autores negros.
Algumas décadas se passariam até o artista inglês Isaac Julien retomar os textos dos intelectuais do Harlem Renaissance para falar sobre as restrições raciais sofridas pelos os imigrantes negros vindos das ex colônias de seu país, questionando a falta de atores negros no cinema e televisão.
Hoje o artista Jaime Lauriano inaugura uma biblioteca inspirada pelo Quilombismo de Abdias, onde rodas de conhecimento horizontal e transparente garantem a leitura de autores negros para toda as idades e níveis intelectuais. Em paralelo, Arjan Martins instala birutas criadas a partir de bandeiras náuticas sugerindo um redirecionamento do pensamento e movimentos coloniais.
Os principais projetos abertos hoje são marcados por décadas de luta pela representação e reconhecimento da produção intelectual negra. Confira!
Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra (MAN)
Desde o ano passado, as equipes curatoriais de Inhotim e do IPEAFRO começaram a organizar uma série de exposições temporárias, ou atos, dedicadas ao Museu de Arte Negra – uma instituição idealizada por Abdias Nascimento. Se na primeira mostra a ideia era estabelecer um diálogo entre os trabalhos de Abdias e Tunga, este segundo momento é destinado à apresentação do Teatro Experimental do Negro, movimento encabeçado por Abdias que está nas origens do Museu de Arte Negra – instituição idealizada pelo artista, dramaturgo e ativista no início dos anos 1950 para ser um “museu voltado para o futuro”.
O MAN nasceu, assim, com o objetivo de “recolher e divulgar a obra de artistas negros [ou que tivessem uma relação com a cultura africana], sem distinção de gênero, escola ou tendência estética, promovendo-se, assim, a documentação de sua criatividade, estimulando sua imaginação e invenção na ampla faixa de expressão plástica”, como descreve o próprio Abdias.
Com a predominância das cores amarelas (uma referência a Oxum) e verde (representativo de Oxossi), a expografia é muito bem pensada formando o simbólico arco e flecha também de Oxóssi, guardião das matas e Orixá do trono do conhecimento. De um lado, fotografias, recortes de jornais e revistas, documentos e cartazes das mais radicais peças apresentadas pelo TEN, do outro algumas obras do acervo do Museu de Arte Negra do IPEAFRO, que conta com pinturas de Heitor dos Prazeres, Sebastião Januário, Rubens Valentin e Tunga, além de esculturas Agnaldo Manuel do Santos.
Para completar, algumas das impactantes pinturas de Abdias, inclusive os primeiros experimentos em tela feitos pelo artista que seriam desenvolvidos durante o período de exílio a partir de 1968. As atividades do Teatro Experimental do Negro, aliás, perduraram até o AI5 e e foi dentro de uma delas, o 1º Congresso do Negro Brasileiro, realizado na cidade do Rio de Janeiro em 1950, que surgiu o projeto Museu de Arte Negra.
“Para o Abdias e seu povo, a arte é parte integral da sociedade e se relaciona profundamente com o cotidiano, a vida e o amor. Para ele – e de acordo com a tradição filosófica e o modo de viver ancestral africana -, a arte faz parte da vida em comunidade, integra as relações humanas e a interação do ser humano com o ambiente, o planeta e o cosmos. Por isso, ele se relaciona obrigatoriamente com a política, que informa e molda essas relações”, explica Elisa Larkin Nascimento, viúva de Abdias e diretora do IPEAFRO.
O título da mostra, Dramas para negros e prólogo para brancos, parte de uma antologia do teatro negro de mesmo nome, organizada por Abdias Nascimento, publicada no Rio Rio de Janeiro, em 1961, e com textos encenados pelo TEN. No “Prólogo para brancos”, Abdias rompe com a perspectiva tradicional do teatro brasileiro que, até então, reduzia o negro à condição adjetiva, folclórica e estereotipada. É um dos primeiros textos publicados no Brasil que afirma a civilização clássica egípcia (no caso, o seu teatro) como africana e anterior à grega. Desta forma, Abdias quebra a barreira da cor nas discussões sobre teatro no Brasil e redimensiona a importância nos tablados do negro e sua cultura.
Looking for Langston, de Isaac Julien
Era 1983 quando Isaac Julien, Martina Attile, Maureen Blackwood, Nadine Marsh-Edwards e Robert Crusz se uniram para criar filmes e textos cujos objetivos eram chamar atenção para o fato do cinema e televisão negligenciar questões de identidade negra. O coletivo seria chamado, a partir daquele momento, de Sankofa ( Sanko = voltar; fa = buscar, trazer) – conceito que se origina de um provérbio tradicional entre os povos de língua Akan da África Ocidental: “se wo were fi na wosan kofa a yenki” em Akan pode ser traduzido por “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. O símbolo do grupo seria formado por um pássaro com a cabeça voltada para a cauda.
Em sintonia com outros grupos contemporâneos de cinema como por exemplo o Black Audio Film Collective, o Sankofa surgiu em um momento em que políticas econômicas de Margaret Thatcher visavam desfazer o estado de bem-estar social, criando uma disparidade econômica preocupante. Era também um período marcado pela postura racista do governo em relação aos imigrantes vindos de antigas colônias britânicas da África e Caribe – o que provocou tensões raciais e protestos em Londres, Liverpool e Birmingham. Neste contexto, a discussão da questão racial se tornou ainda mais urgente e as teorias pós-coloniais já estavam reformulando os campos da sociologia, antropologia, literatura, artes plásticas e cinema.
Entre os trabalhos realizados pelo Sankofa, a equipe de curadores de Inhotim selecionou o filme Looking for Langston no qual Isaac Julien tece uma alegoria de encontros trans-históricos e transatlânticos entre os mundos do Renascimento do Harlem da década de 1920 e redutos da cultura afro-diaspórica como o de Brixton dos anos 1980 – período marcado também pela epidemia do HIV.
Do belíssimo filme nasceram fotografias que são intercaladas com poemas de Langston Hughes – um dos membros do Renascimento do Harlem -, onde Julien une a sexualidade à discussão sobre raça, ressaltando o papel fundamental e intrínseco da política queer para a produção intelectual negra da época. O trabalho faz referências, ainda, a outros artistas como Alain Locke, Bruce Nugent, James Baldwin e Countee Cullen.
Assim como na ideia central de Sankofa, Julien olha para trás com o objetivo de recuperar a ideia de liberdade – sufocada tanto pela discriminação racial quanto pela sexualidade heteronormativa. Aqui fato e ficção se unem de forma sensual e fantástica para escrever uma história esquecida pela História.
“Em 1954, Langston Hughes trocou correspondências com Abdias Nascimento, autorizando o Teatro Experimental do Negro a encenar suas peças. Nesse sentido, Hughes, Abdias e Julien, cada um à sua época, buscavam representatividade e reconhecimento da produção artística e intelectual negra”, diz Julieta González, diretora artística do Inhotim. ”Muitos dos integrantes do Renascimento do Harlem eram homossexuais. Julien cria, assim, esse tecido de referências no auge da crise da AIDs. Se a arte já teve em algum momento uma forte e efetiva influência no campo da vida pública foi durante a epidemia da AIDS. A visibilidade que os artistas deram foi muito importante não só para a desestigmatização da doença, mas também para mobilizar investimento e políticas públicas”, pontua a curadora. “Toda comunidade artística foi muito afetada por essa doença, quase todos os atores desse filme, por exemplo, morreram por consequências do vírus poucos anos depois da gravação”, completa.
Ocupação Jaime Lauriano
Interessado na forma de aprendizado orgânica e horizontal dos terreiros, Jaime Lauriano transformou a tradicional biblioteca do instituto num “terreiro do conhecimento”. A ideia era pensar numa biblioteca que fugisse da racionalidade e rigidez das bibliotecas criadas pelo pensamento colonial e eurocêntrico, especialmente o iluminista. Que quebrasse a hierarquização do conhecimento.
A ideia é tirar as publicações dos “lugares sagrados” das bibliotecas tradicionais e facilitar a troca sugerindo um espaço mais aberto, baixo e distribuído em rodas – forma essencial proposta para compartilhamento de ideias e conhecimentos. “A nossa felicidade vai ser ver os livros marcados e sujos mesmo. Só assim eles vão sair desse lugar elitizado do conhecimento”, propõe o artista. “Tenho uma pesquisa sobre os mobiliários das roças de candomblé. Esses móveis são inspirados nos apotis, que são os bancos de iniciação nos terreiros. Criamos bancos com um novo formato que facilitasse o transporte para outras áreas do parque e, juntos, criassem novas formas que estimulam o compartilhamento de conhecimento”, explica.
Jaime explica que queria criar um espaço aconchegante e acolhedor – em diálogo com o Quilombismo do Abdias, onde existe uma mistura de saberes. Os livros, portanto, estão bagunçados para as pessoas acessarem de forma orgânica. Você verá que tem uma história em quadrinhos do lado de uma bibliografia do Malcon X ou de um livro teórico do Frans Fanon ou um romance de Chimamanda Ngozi Adichie.
A proposta do artista é levar o projeto para o parque e para a região de Brumadinho: os bancos, as esteiras e possivelmente algumas redes serão distribuídos pelo Inhotim para as pessoas levarem as leituras para fora do espaço destinado à biblioteca. A seleção de títulos, compostos por autores negros ou brancos que refletiram sobre a história e cultura negra, foi feita inicialmente por Jaime, mas haverá um email para que o público possa sugerir novas compras. “Se fosse uma seleção só minha, o espaço contaria apenas uma história. Nossa vontade é construir algo plural e colaborativo. Ele está organizando, ainda, uma playlist também colaborativa com músicas que abordam a cultura negra em toda a América que representam a resistência de um povo. Além disso, o artista e a equipe curatorial pretende publicar um livro e um podcast com histórias orais contadas por membros de duas comunidades quilombolas da região! Que a sabedoria afro-diaspórica ganhe o espaço que merece.
Birutas, de Arjan Martins
Em diálogo com estas exposições está a instalação Birutas, de Arjan Martins, recém adquirida para o acervo do intituto e mostrada ao público pela primeira vez no topo de uma montanha entre a piscina de Jorge Macchi e Marilá Dardot.
Trata-se de um trabalho sobre as migrações afro-atlânticas que dialoga com a ancora produzida pelo artista para a última Bienal de São Paulo. Ao se apropriar do elemento náutico que indica a direção dos ventos e dos códigos internacionais usados para transmitir mensagens entre embarcações e portos, Arjan propõe uma discussão sobre deslocamentos de corpos negros e presenças entre espaços de luta e poder em territórios afrodiaspóricos. “Na fusão desses dois elementos, birutas e bandeiras náuticas, Arjan trata do trânsito de corpos por meio dos oceanos, do tráfico de pessoas escravizadas e das diásporas causadas pelos movimentos coloniais”, explica Douglas de Freitas, Curador do Inhotim. Por aqui talvez seja possível vislumbrar novos ventos e caminhos para estancar, de uma vez por todas, essas lacunas e violências históricas.
Serviço:
Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra: Dramas para negros e prólogo para brancos
Até setembro de 2022
Looking for Langston, individual de Isaac Julien
Até setembro de 2022
Ocupação de Jaime Lauriano
Até novembro de 2022
*O projeto Inhotim Biblioteca, que vai convidar, anualmente, artistas e pesquisadores que estabeleçam diálogos com a biblioteca do Instituto.