Imagine um mundo de coisas que desapareceram, de territórios fantasmagóricos. Imagine um mundo repleto de embates e fluxos interrompidos. Um mundo em que relações precisam ser negociadas, em que o caos prevalece a favor da comunhão e contra o radicalismo excludente. Durante a pandemia do COVID-19, mais do que nunca, estamos aprendendo a lidar com a dor da perda e da ausência crescente e, aos que ficam, parece cada vez mais necessário saber conviver com a diferença – territórios distópicos que vivenciamos permeiam, e tornam ainda mais pertinentes, as novas obras de Lucia Koch e Rommulo Vieira Conceição e a exposição de Aleksandra Mir, abertas ao público no dia 28 de agosto no Instituto Inhotim.
As instalações inéditas, de Lucia e Rommulo, pensadas especialmente para Inhotim e a região que circunda o Instituto, e a exposição de Aleksandra, com obras adquiridas pelo acervo mostradas pela primeira vez, fazem parte do programa Território Específico – eixo de pesquisa que norteia a programação do Inhotim no biênio 2021 e 2022 e busca refletir sobre a relação das instituições com seu entorno.
Nasceram, assim, propostas de territórios imaginários, abstratos, distópicos e, muitas vezes, possíveis. “A ideia é justamente tensionar essas questões, utopia e distopia, específico e universal, permanência e deslocamento, ou mesmo a impossibilidade de deslocamento. Nesse contexto, interessa a fricção entre a realidade e a abstração, em retratar o território e desenhar novos territórios possíveis”, revela o curador Douglas de Freitas. Território Específico nasceu a partir da ideia de “território” desenvolvida por Milton Santos. Para ele, a existência do território só é dada pela vida que o anima, pelas relações sociais. “A partir dessa reflexão, começamos a pensar na noção de território de maneira transversal com objetivo de fazer uma investigação sobre os aspectos digitais, ambientais, sociais e artísticos que acontecem dentro do Inhotim, em seu entorno e na multiplicidade de relações que a partir dele se desdobram”, pontua Lorena Vicini, gerente de comunicação.
PROPAGANDA, Lucia Koch
Ao fazer sucessivas visitas em Brumadinho para idealizar as obras comissionadas pelo Inhotim, a artista mineira reparou que a cidade se transformou nos últimos anos, não só pelas perdas irreparáveis depois do rompimento de barragem da Vale em janeiro de 2019, mas pelo resultado das indenizações pelas vidas perdidas: a explosão de mercado local que reflete em outdoors espalhados pela cidade propagando todo tipo de produto, desde carros importados ou condomínios de luxo. “Esses outdoors transformaram muito a paisagem de Brumadinho”, expõe a artista que decidiu partir deles para pensar sobre seu trabalho.
O segundo maior desastre industrial do século no Brasil certamente transformou aquele território em escalas ambientais, sociais e econômicas. E outro ponto marcante da região é a necessidade de aprender a lidar com a ausência – a catástrofe matou 259 pessoas e outras 11 seguem desaparecidas. Não à toa, Lucia decidiu trabalhar com uma série que nasceu depois que ela leu o livro O país das últimas coisas, de Paul Auster – um romance onde a personagem principal vai resgatar o irmão num país onde as coisas já não são mais fabricadas e elas começam a desaparecer. A trama acaba girando sempre em torno de cavar e encontrar o que está desaparecido ou sobre modos de morrer – o que faz do livro e do trabalho cada vez mais atual não só pelo acidente da Vale, mas também durante uma pandemia de proporções ainda mais trágicas. Afinal, como devemos lidar com o fim? Como viver a ausência ou extermínio? “Fiquei pensando muito sobre embalagens vazias, como se fossem a representação do ´depois das coisas´”, reflete a artista. Há 20 anos, Lucia transforma interiores de embalagens vazias em imagens ampliadas que resultam em sensações arquitetônicas, como uma espécie de espaço virtual.
Ela resolveu, então, aplicar essas imagens nos suportes publicitários típicos da cidade – além do outdoor tradicional, há um sistema de painel triface que, de acordo com a artista, é um hit em Brumadinho. “Fiquei imediatamente atraída porque nunca tinha experimentado esse formato quase cinemático, com uma imagem se transformando em outra”, revela a artista que usou três queijeiras garimpadas no mercado de BH que, fotografados e ampliados pela artista com luz natural, parecem pavilhões modernistas.
Ela costuma usar caixas vazias de produtos facilmente reconhecíveis na região. Para o painel fixo da sala expositiva, ela escolheu um saco de carvão, muito comum em Brumadinho, chamado arco iris. “ O trabalho chama Arco-íris cor de sangue porque o arco-íris da embalagem é vermelho, foi inevitável não fazer uma homenagem a Luiz Melodia”, brinca a artista. Já no meio da paisagem do instituto, ela instalou um outdoor gigantesco com uma imagem de uma caixa de cogumelos, cujas aberturas idealizadas para o produto crescer parecem janelas – especialmente pelo fato dela fotografar com luz natural.
Além dos 3 trabalhos dentro do Instituto, ela escolheu 5 pontos estratégicos no caminho entre BH e Inhotim, que fossem ao mesmo tempo bastante visíveis e frequentados pelos moradores de Brumadinho, para instalar outdoor com suas embalagens arquitetônicas. O objetivo é investigar a repercussão da presença desses espaços virtuais entre os frequentadores do lugar, além de pesquisar que tipo de estranhamento um dispositivo de publicidade que aparentemente não vende nada pode causar.
“Me interessa a ideia de ter, durante um ano, esses painéis expostos sem vender nenhum seguro, condomínio de luxo ou curso de informática. Também gosto de pensar sobre a diferença de ter a mesma imagem dentro de Inhotim, um espaço de arte controlado, e no meio da cidade ”, reflete a artista. Há, aqui, uma reflexão ligada diretamente com o conceito do projeto Território Específico, pois ele nasceu também a partir de uma discussão sobre o conceito do site specific na arte contemporânea. Por exemplo, a obra Beam Drop foi inicialmente realizada no Art Park, em Nova York, na década de 1980 e nos anos 2000 em Inhotim. Como esse deslocamento afeta o significado da obra? Como ele transforma a paisagem que passa a compor? O território é, portanto, contínuo, mutante e infindável, compreendendo fronteiras e limites móveis e flexíveis, entre fixos e fluxos.
Em tempo: Diferentemente do que está exposto em Inhotim, os painéis da cidade que propagandeiam suas caixas vazias aparecem entre publicidades reais, criando uma perturbação ainda mais interessante entre os transeuntes.
O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção, de Rommulo Vieira Conceição
Conhecido por sobrepor elementos presentes em espaços públicos e privados com o objetivo de causar deslocamentos simbólicos e funcionais, o baiano Rommulo Viera Conceição também desenvolveu o seu trabalho a partir da observação não só de Brumadinho, mas também em Belo Horizonte e cidades históricas de Minas Gerais. “Me interessa essa diferença tênue entre o espaço e o lugar. O espaço é algo indiferenciado, torna-se um lugar quando criamos familiaridade. Portanto, eu sempre tento criar a partir de aspectos e reconhecíveis. Aí entra uma discussão importante sobre territorialização: quando eu transformo um espaço em um lugar, quando eu me aproprio dele. Na nossa casa, por exemplo, transformamos um espaço em um lugar quando colocamos objetos que nos são caros”, explica o artista que já fez trabalhos, por exemplo, unindo elementos de supermercados e cinemas.
A ideia, portanto, é transformar a instalação em um lugar a partir da sobreposição de vários lugares a partir de suas referências arquitetônicas e simbólicas, de forma que esse lugar fique cada vez mais embaralhado. O objetivo? Entender como nos comportamos dentro deles.
O ponto de partida do trabalho de Inhotim foi a compreensão de que boa parte do momento de extrema intransigência que vivemos hoje remete ao extremismo religioso. “Não que isso seja verdade absoluta, mas o Brasil sempre foi visto como multicolorido, diverso e harmônico – onde várias culturas convivem bem juntas. Nós sabemos que não é bem assim, mas havia uma venda dessa imagem do país. Em 2013, há um marco muito especifico que aponta para uma mudança radical dessa imagem: as campanhas a favor e contra o aborto. munidas dos extremismos religiosos. A partir daí começou o crescimento da intolerância que atingiu o auge em 2018. Dali para frente vimos aumentar os extremismos religiosos. Passamos de uma ideia ou ideologia de convivência para a um período de embate e intolerância que cresce também subsidiada pelas religiões, relembra o artista. A religião, vale notar ainda, sempre esteve um papel considerável na História da Arte e na construção imagética e arquitetônica de diversas culturas.
Pensando nisso, o artista “colecionou” imagens de arcos, cúpulas, paredes, grades, andaimes, quartinhas e frontões que encontrou nas igrejas, congregações e outras representações da região, sobrepondo-os para criar uma espécie de labirinto. É possível ver referências ao islâmismo, judaísmo, religiões afro-brasileiras, até as chamadas neo-religiões. “Os frontões dessas neo-religiões estão em alta, aparecem também em shopping e nas casas das pessoas como uma forma de legitimação daquele lugar, mas no fundo ele está em cima de andaime, ao alcance da mão, muito próximo do indivíduo. Não sustentam nada, pelo contrário”, ressalta o artista. “Os andaimes são para pensar no Brasil que estamos construindo”, conclui. Os arcos, por outro lado, perdem a sua funcionalidade estrutural arquitetônica e passam a sustentar o nada, “ou talvez deixem de sustentar a representação do céu das arquiteturas sacras para o deixar o céu real ser visto através deles”, explica Douglas de Freitas.
Rommulo também inclui elementos de escolas públicas para ressaltar a importância das religiões, no Brasil, para construção dos indivíduos. “Essas religiões, no Brasil, também são responsáveis pela educação. Ou seja: as informações conservadoras estão muito na base dessa sociedade”, pontua o artista.
Apesar de ter algumas formas e cores alteradas, esses elementos ainda são reconhecíveis, criando uma relação com o visitante que naturalmente se sente atraído pelo colorido e as superfícies reluzentes. Esses elementos conduzem o olhar do visitante para diferentes direções, acentuando a desorientação desse espaço em estado de construção, e nos convida a percorrê-lo, penetrá-lo. Mas não conseguimos: o fluxo é constantemente interrompido por grades e outros obstáculos que causam um certo desconforto e confusão.
Instalado no Jardim Sombra e Água Fresca, O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção irá te atrair como um lugar fantástico ( há uma semelhança visual com parques infantis), mas há de se revelar uma espécie de armadilha e um convite para refletirmos sobre a necessidade de fazer concessões para que a convivência aconteça. O circuito é truncado, mas pode ser percorrido com um pouco de esforço e quebra de paradigmas.
Entre-terras, Aleksandra Mir
É também sobre esse esse encontro distópico e truncado, onde é preciso dialogar e ceder em alguns momentos, o conjunto de trabalhos de Aleksandra Mir expostos em Inhotim. “Os trabalhos de Aleksandra e Rommulo, cada um ao seu modo, falam da potência da convivência. De como as experiências podem ser somadas ao invés de isoladas, e apontam para um possível mundo, que pode também ser caótico, mas que é caótico pela comunhão, e não pela disputa ou pelo radicalismo”, ressalta o curador.
A artista usa caneta Sharpie para criar gigantescos desenhos feitos a partir do negativo do mar Mediterrâneo e do território em sua volta. O mar vira, aqui, um território imaginário de convivência e confronto. Afinal, o Mediterrâneo é historicamente um espaço em disputa, marcado por transições sociopolíticas e, consequentemente, culturais. Foi o palco, entre os séculos 15 e 16, das rotas de comércio marítimo entre África, Europa e Ásia, convergindo em zonas de contato que resultaram tanto em potentes choques culturais. Essa zona de contato, “mediterrâneo”, do latim, significa “mar entre terras”.
Vistos de longe, todos parecem massas brancas, pretas e de diferentes tons de cinza com elementos gráficos. Mas à medida que o visitante se aproxima das obras, os detalhes do cartum se revelam, irônicos e divertidos. Percebemos, em Iceage e Heatwave, cenas que expressam o comportamento e convívio humano em momentos de extremidades climáticas. Há, aqui, um diálogo interessante com a performance Sun & Sea, que ganhou o leão de ouro na última Bienal de Veneza – a apresentação do pavilhão da Lituânia era composta por cantores falaram sobre nossa delicada relação com o planeta.
Já em Heartbreak, a artista elimina a presença da figura humana e, como Rommulo recorre ao forte poder simbólico das formas: cria uma composição de símbolos religiosos, em grande parte cruzes, mas nem todas cristãs, em contrapartida com corações timidamente desenhados. Os elementos religiosos retomam os movimentos radicais na região e refletem sua percepção da vida no mediterrâneo, enquanto estava residindo na Sicília. ”O trabalho chama a atenção para as manifestações culturais carregadas por aquelas águas ao longo de milênios, como agentes de troca entre sociedades e no deslocamento de indivíduos”, comenta o curador Douglas de Freitas. “Nosso olhar é então redirecionado ao território como um local de experiências coletivas”, conclui.
As referências gráficas dos desenhos partem da admiração que a artista teve desde criança por cartum e poster de filmes poloneses dos anos de 1970, que trazem a estética do humor conceitual e grotesco. Segundo Mir, essa estética foi uma das primeiras referências visuais que teve contato quando pequena, e que trazem à tona, o complexo período político que vivenciou na Polônia. Apesar de ter nascido na Polônia, Aleksandra Mir não se identifica como polonesa, uma vez que aos 5 anos de idade, ela e sua família tiveram que se exilar, dado o contexto de repressão política que assolava o país. Ela cresceu na Suécia tornando-se cidadã, o mesmo ocorreu quando mudou, em 1989, para os Estados Unidos da América, onde estudou artes visuais e antropologia. A artista se identifica como sueco-americana e hoje mora em Londres. Desde a infância, portanto, ela se habituou a negociar e transgredir fronteiras e, aos poucos, passou a questionar as forças sociopolíticas que moldam as identidades nacionais e locais. Sua nacionalidade fluida, portanto, aparece em seu trabalho que frequentemente levanta questões sobre territorialidade e identidade e investiga fatores sociais, políticos e econômicos do trânsito humano. “Em um dos seus primeiros trabalhos, Life is Sweet in Sweden , de 1995, ela explorou questões sobre a perda de reconhecimento pátrio de moradores de Gotemburgo, dado ao grande fluxo de turistas que invadia a cidade, transformando-a em um espetáculo turístico. Para Mir, o choque cultural emanado de viagens é o responsável por “reavaliar” nossas concepções sobre a cultura e as práticas sociais pré-estabelecidas”, explica o curador.