Wept without tears é um livro escrito por Gideon Grief, publicado primeiro em hebraico, ele consiste em testemunhos dos sobreviventes do Holocausto que ocuparam a função de sonderkommando – ou seja estavam designados a facilitar o extermínio em massa, sendo executados meses depois. É importante frisar que a publicação foi escrita em hebraico, pois os testemunhos nesta língua é fundamental para que nós possamos compreender o tamanho deste horror. Como tal alfabeto é composto por 22 letras que contém valor numérico e significado transcendental para esta cultura, narrar o evento do genocídio a partir deste sistema lógico é um fator decisivo na recuperação da humanidade do povo judeu. Especialmente para os sonderkommando, que em suas narrativas trazem em comum o sentimento de que antes do extermínio físico, havia um extermínio da alma. Eles apontam pontos simbólicos e filosóficos que os destituiam da noção de humanidade: era esta primeira brutalidade que tornava outras possíveis. Logo, eles concordam que em primeiro lugar suas almas foram violentadas, de modo que: a fome, o empobrecimento e a alienação eram consequências do projeto genocida e não meios.
Trago como ponto de partida este contexto porque a problemática a cerca da restituição dos acervos coloniais por parte dos países europeus para os países africanos aparenta ter este mesmo ponto em comum. Um saque que se inicia primordialmente na alma de um povo, afim de tornar as subsequentes atrocidades possíveis. Não por acaso, os processos de restituições tornam-se mais populares posterior a onda de protestos #blacklivesmatter , intensificados depois da morte de George Floyd. Com dimensões globais, as manifestações tiveram aderência de grande parte da população dos mais diversos países. É possível ver seus efeitos na maioria dos mercados e na dinâmica publicitária das marcas de modo que a equidade racial tornou-se uma demanda eleitoral incontornável. Neste ponto, a restituição das obras tende a responder também a este apelo popular. No entanto, vale lembrar que este movimento ocorre em paralelo aos boicotes a conferência da ONU sobre racismo. O evento que atualiza os objetivos traçados na Conferência de Durban (África do Sul/2001) foi sabotado em sua edição em 2021 por países protagonistas no repatriamento de acervos coloniais: EUA, Canadá, França , Reino Unido, acabam por isentarem-se de qualquer comprometimento global com políticas anti-racistas dentro de seus territórios. Tal contradição torna-se visível nas negociações acerca dos acervos coloniais, e nas demandas dos países africanos como veremos a seguir.
Para entender o complexo movimento em torno dos acervos coloniais africanos, é necessário perceber que o aparato científico empregado no Holocausto foi engendrado durante a ocupação colonial dos estados europeus no território africano. Momento no qual tanto a antropologia quanto a museologia foram desenvolvidas a fim de capturar o sistema lógico dos povos, para então subjulgá-los. É neste contexto que a França adquiriu e conserva até hoje o acervo colonial beninense – saqueado ao fim da Guerra Franco-Daomeana que extinguiu o reino do Daomé em 1892, após traficar boa parte de sua população. Este foi o último grande confronto colonial travado na Africa Ocidental, região responsável por parte significativa do trafico atlântico de pessoas negras.
Conhecido como rei Tubarão, ou Ovo do Mundo, o Rei Benhanzin foi o líder do último império a resistir aos poderes europeus. Suas duas ações derradeiras, após ser acuado em confronto, consistiram na queima os templos e castelos- a fim de excluir qualquer chance dos invasores de aprisionar a população por meio de seu próprio sistema lógico -, e na negociação de sua rendição em troca da liberdade do povo fon (grupo étnico que detém a maior quantidade de registros sobre o sistema lógico vodoun). Nesta última ação, Benhanzin foi enganado e enviado ao exílio na Martinica. Logo após este momento, sob as ordens do general Dodds , há uma pilhagem de castelos e templos principalmente nas regiões de Ouidah e Cana – o objetivo era saquear todo e qualquer objeto de valor para o domínio francês.
É de extrema relevância explicitar aqui o quanto tal ação é reflexo do trauma colonial acerca da Revolução da Haiti , em 1791, sob o imaginário de poder Francês. Visto que neste episódio o Iluminismo somado a lógica vodoun serviu como combustível ideológico para a emancipação do país e instituição da primeira democracia anti-racista. Lembrando desse episódio é possível entender, portanto, que a queima dos castelos por parte de Benhanzin e o saque dos objetos (pelos poderes franceses) constituíram uma batalha sobre a possibilidade futura de reação contra a dominação.
Desta forma, na atualidade, o retorno destes objetos ao território saqueado consistiria num primeiro passo rumo a uma retratação histórica. Dentre os objetos restituídos estão: as portas do castelo do rei Glegle, pai de Benhanzin, onde ancestrais e vodouns estão correlacionados as eras anteriores; um trono do rei Ghezo (similar ao presenteado a Dom Pedro II, no intuito de obter apoio na busca por sua mãe enviada como escravizada ao Brasil*); estátuas reais e altares portáteis intitulados Opo – também vistos no candomblé como objetos de poder que concede ao seu portador dimensão sobrenatural. O destino final das obras são um museu novo em construção no palácio de Abomey, com o apoio do governo Francês. Enquanto as obras não finalizam, o acervo ficará em exposição no Forte português de Ouidah – o que de algum modo representa um contra-senso, senão uma última violência estrutural.
Na última quarta feira, dia 10 de novembro, o portal France 24 noticiou que centenas, senão milhares de pessoas, foram até o aeroporto de Cotonou para receber estes artefatos. Há relatos de famílias que viajaram cerca de 500 quilômetros até a capital econômica do país, apenas para receber as obras. Foram prestadas homenagens com dança, música e celebração (mesmo durante a pandemia de COVID-19, no país onde ainda existe uma escassez de vacinas). De fato as memórias culturais do saque ocorrido 130 anos atrás, permanecem vividas no lugar, como no caso das Ahosi ou Mino – o destacamento feminino do exercito do Daomé -, cujas descendentes até hoje são tratadas como autoridades . O presidente Patrice Talon chegou a declarar que “a alma do país retornou ao lar’.
Entretanto, o clima de festividade não esconde as reais tensões por trás do tema. Em declarações de Outubro de 2021, o presidente do Benin apontou que, na lista das 26 obras, está ausente uma peça importante: a estátua da divindade Ogun, relacionado com a noção de tecnologia, a habilidade de guerrear e ao progresso coletivo. O Ministro da Cultura Jean–Michel Abimbola relembrou ainda, as repetidas vezes que o governo reivindicou esta e outras obras que não constam na lista de artefatos devolvidos.
O governo francês menciona a vontade de expandir a lista de restituição para outros países, entretanto não comenta a ampliação da lista de obras devolvidas ao Benin. Em tom de agradecimento e provocação Talon disse a imprensa, ao receber as obras: ‘Este é o primeiro passo em direção a uma maior restauração”. Não por acaso, este movimento do governo francês inicia-se no ano em que entrou em vigor a Zona do Livre Comércio Continental Africana, que conta com um PIB total de mais de 3 trilhões de dólares, marcando um momento de ameaça da influência da França sobre suas ex-colonias.
Tais sistemas lógicos não se restringem aos países africanos, eles estão presentes também nas comunidades brasileiras de matriz africana. Num caso similar, uma série de objetos foram aprendidos em invasões a templos e comunidades pela Policia Civil do Rio de Janeiro entre os anos de 1989 a 1945, essa série de objetos foram chamados por muito tempo de coleção Magia Negra e permaneceu no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro até ser reivindicado por um grupo de lideranças de matriz africana entitulado Liberte Nosso Sagrado. Das 523 peças que compõem o acervo atualmente, 126 foram tombadas pelo IPHAN em 1938. Por pressão popular, o acervo foi rebatizado com o nome de Acervo Sagrado Afro-Brasileiro. E em 2020 o conjunto foi transportado para o Museu da Republica onde segue sob tutela compartilhada da equipe do museu e das lideranças que reivindicaram sua liberdade.
Há no país casos mais tristes do mesmo evento, como os objetos saqueados no Baque aos terreiros de Xango em Pernambuco, no ano de 1938. Quando a Missão Folclórica idealizada por Mario de Andrade chegou ao Estado, exatas 24h depois do fechamento arbitrário e sumário destas comunidades, os objetos apreendidos foram doados ao Departamento de Cultura da Municipalidade Paulistana da qual o intelectual era director. Estes objetos nunca foram devolvidos às suas comunidades de origem. Estão até hoje armazenados no Centro Cultural São Paulo, sem nenhum tipo de alimentação ritual ou procedimento público que reflita sua dimensão subjetiva. Este fato, ainda que ocorrido depois da semana de 22 (que completa 100 anos em breve) revela muito sobre sua influência no cenário nacional, bem como suas inclinações coloniais. Há também na cidade de São Paulo um acervo relevante de obras rituais africanas no MASP e em algumas coleções particulares.
Este ponto em especial releva muito sobre o papel do Brasil no movimento global que está em curso. Ainda que colonizado, o país foi uma grande, senão a maior potência escravocrata do mundo, sendo o último país das Americas a abolir a escravidão. Deste modo reside sob a mesma nação dois polos do conflito global acerca do colonialismo. A geração dos 60 de artistas negres brasileiros produziram a partir de uma lógica ritual ignorada pela narrativa da arte brasileira e até hoje ausente nas escolas de arte. Rubem Valentim, Mestre Didi, Abdias do Nascimento, Agnaldo dos Santos, entre outros, instrumentalizaram em suas obras um sistema lógico herdado por meio da sobrevivência ao colonialismo e até hoje ameaçado de extinção.
É possível notar que os artistas contemporânea da segunda década do século 21 voltam a se interessar para a produção destes artistas, aproximando-os do contexto africano, com o objetivo de acessar um sistema lógico fundamental para entender o que de fato está em jogo na onda de manifestações anti-racistas que tomou as ruas durante o auge da pandemia de COVID-19, em 2020.
A restituição das obras rituais aos países africanos é parte de um novo capítulo numa batalha secular, onde a disputa pelo poder é travada na narrativa. Resta saber se no futuro a morte de Geroge Floyd vai ser contada pelos países que traficaram seus ancestrais. Ou se, assim como os Sonderkommando, no livro de Grief, os sobreviventes conseguirão narrar os fatos a partir de seu próprio sistema lógico.
* Ana Beatriz Almeida é artista-pesquisadora. Ela também é fundadora e diretora da 01.01 Art Platform e responsável pelo programa de aquisição decolonial Mestre Didi + Abdias Nascimento.
* As imagens desta matéria são cortesia da 01.01 Art Platform