Uma das obras mais interessantes da Documenta 15, Animal Spirits, da artista alemã Hito Steyerl toma o título emprestado de um termo cunhado pelo economista britânico John Maynard Keynes que descreve como as pessoas chegam às decisões financeiras em tempos de estresse econômico ou incerteza.
A artista questiona onde os humanos se encaixam em um mundo cada vez mais ameaçador, onde a tecnologia digital e o capitalismo em constante evolução se expandiram para um universo tão absurdo quanto o da criptomoeda.
O filme de Steyerl mostra pastores locais que lutam contra os produtores quando decidem criar um campo de batalha animal no metaverso. A instalação é composta, ainda, por 11 lâmpadas com plantas dentro, formando pequenos ecossistemas monitorados por sensores. Em alguns deles podemos encontrar alguns queijos! É uma brincadeira com a ideia da criptomoeda “cheesecoin”.
Steyerl é bastante cínica quando o assunto é a excitação do mundo com a arte NFT, que, na verdade, não é diferente do mercado de arte convencional em termos de seu mecanismo de mercado.
A obra foi muito comentada esta semana, mas não pense que foi porque atingiu preços exorbitantes no mundo digital – seria hilário. E sim porque a artista anunciou a retirada do trabalho da Documenta 15 citando a falha dos organizadores em responder às queixas de antissemitismo. A decisão da artista proeminente vem após uma série de controvérsias em torno da última edição do evento e do coletivo de artistas indonésios Ruangrupa, que fez a curadoria. “Não quero apoiar a contínua falta de responsabilização organizacional sobre a falha de supervisão em relação ao conteúdo antissemita mostrado na documenta 15”, escreveu a artista no email publicado pela ArtNews.
Steyerl também removeu seu trabalho da Coleção Julia Stoschek em Berlim depois que a colecionadora que dá nome à instituição negou alegações de que a fortuna de sua família veio da fabricação de botijões de gasolina e armamentos para os nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
A polêmica na Documenta
As alegações de antissemitismo virem à tona no início deste ano devido a participação do coletivo The Question of Funding, liderado por Yazan Khalili, pois os artistas do grupo palestino seriam aliados ao movimento Boycott, Divestment, Sanctions (BDS) – grupo que defende o boicote ao Estado de Israel e sua política de guerra. Definido no site da Documenta como “um crescente coletivo de produtores culturais e organizadores comunitários da Palestina”, o The Question of Funding apresentou obras sobre ideias para o financiamento da cultura e a função do mercado de arte.
Inicialmente a acusação, feita por uma aliança contra o antissemitismo, foi rejeitada pelo Ruangrupa, curadores da mostra, em carta aberta apelando pela liberdade artística. Na época, tanto a ministra alemã para Cultura e Mídia, Claudia Roth, quanto o conselho supervisor da Documenta respaldaram a equipe de curadores.
O resultado? O espaço que abrigaria a exposição do grupo foi arrombado e vandalizado com pichações em Maio, antes mesmo da abertura da mostra, As mensagens foram interpretadas como islamofóbicas e contendo “ameaças de morte enigmáticas”.
As discussões seguiram e no dia oficial da abertura da exposição, Kassel foi tomada por protestos dos dois lados. Uma semana após a abertura da exposição, mais polêmica! O grupo de curadores precisou cobrir uma obra do coletivo de arte Taring Padi que apresentava caricaturas judaicas estereotipadas.
A instalação People’s Justice, levantada na frente da praça principal de Kassel, mostrava uma espécie de ilustração do juízo final. Entre os soldados, é possível um com o rosto de um porco e uma estrela de Davi no pescoço. No seu capacete é possível ler a palavra “Mossad”, uma referência ao serviço secreto do Estado de Israel, com sede em Tel Aviv.
Em nota oficial, o grupo pediu desculpas à comunidade judaica e aos participantes da exposição afirmando que nunca tiveram intenções de promover o antissemitismo, mas queriam falar sobre as lutas que viveram sob a ditadura militar de Suharto, onde a violência, a exploração e a censura eram uma realidade cotidiana. “Como toda a nossa obra de arte, o painel tenta expor as complexas relações de poder que estão em jogo por trás dessas injustiças e o apagamento da memória pública em torno do genocídio indonésio em 1965, onde mais de 500.000 pessoas foram assassinadas”, explicaram os artistas. “Nunca tivemos a intenção de ódio direcionado a um determinado grupo étnico ou religioso, e sim fazer uma crítica ao militarismo e à violência estatal.” De fato, existem outros personagens na tela que representam diferentes “soldados” da história como a KGB e até o 007. Portanto, até faz sentido associar diferentes poderes oficiais aos porcos – como acontece com frequência na arte, inclusive no Brasil.
A imagem mais crítica, no entanto, está do lado direito do painel: é possível ver outra figura de dentes afiados, orelhas diabólicas, cachos na lateral estilo típico dos judeus ortodoxos e olhos injetados de sangue. Em seu chapéu é possível ver a sigla do SS – uma referência ao Schutzstaffel, termo alemão que significa “esquadrilha de proteção” usado por um grupo fundado em 1925, com o objetivo de proteger Adolf Hitler. Os membros da SS eram constituídos pelos chamados “homens de elite”, indivíduos que se enquadravam nos padrões de “pureza” racial defendidos pela ideologia nazista. Ou seja, o coletivo estaria fazendo uma associação direta entre judeus ortodoxos e os nazistas, muito provavelmente por causa dos massacres na Palestina.
Eles reconheceram que as imagens “assumiram um significado específico no contexto histórico da Alemanha”. A declaração, entretanto, também foi alvo de críticas. Afinal, retratar judeus como sanguessugas não deve ser apenas um problema no contexto alemão, mas em todos os lugares do mundo.
No Brasil
Parte do conceito da Documenta envolve a ideia de criar um grupo de discussão e apoio entre instituições de arte do mundo inteiro chamada de “rede lumbung”. Toda exposição, aliás, foi guiada pela palavra “lumbung” que significa “celeiro de arroz comum”, um lugar típico na Indonésia onde o excedente da colheita é armazenado para o benefício de todos.
Hoje, dia 20 de julho, a Casa do Povo divulgou uma nota oficial para responder aos rumores que foram publicados no Frankfurter Allgemeine Zeitung dizendo que um “coletivo judeu de São Paulo” havia sido convidado, e depois desconvidado, para participar da rede lumbung da Documenta 15 por causa de “protestos de participantes próximos à Palestina”.
A instituição acredita que o artigo estava fazendo referência à Casa do Povo e ressalta que nunca foi oficialmente convidada a participar da rede Lumbung, pois as conversas informais terminaram por causa da situação do Covid 19. “O fato de sermos uma instituição judaica nunca foi discutido, e não houve qualquer antissemitismo”, pontuam.
“Claro que ficamos profundamente magoados com as imagens antissemitas no mural de Taring Padi que foram exaustivamente discutidas e legitimamente condenadas no debate público no último mês, mas também achamos que a Documenta e o Ruangrupa fizeram a coisa certa desmontando o trabalho em questão de dias, uma decisão que sabemos que é sempre difícil de tomar.”, completam.
A Casa do Povo diz que gostaria de entender melhor a genealogia dessas imagens, mas já são gratos pela Documenta, a equipe artística e os artistas oficialmente se desculparem. E finalizam: “Então perguntamos: O que mais eles devem fazer?”