Diálogos e negociações. Quase todos os trabalhos de Jonathas de Andrade partem de conversas com grupos de pessoas que chamam sua atenção por diversas razões: analfabetas, homens que lidam com o trabalho braçal na cidade, empregados e patrões de fazendas brasileiras, trabalhadores de um canavial, uma comunidade de surdos de uma cidade no Piauí, pescadores de uma região de Alagoas, mulheres indígenas do Pará, atrizes de um grupo de teatro de Pernambuco.
Filho de uma professora de escola da rede pública, ele sempre se interessou pela linguagem como expressão da identidade nordestina e da história do Brasil. É portanto pesquisando várias formas de comunicação e didáticas de ensino que ele tenta traduzir, afinal, que país é esse! Arquitetura, construção, desejo, prazer, trabalho, calor, cheiros, carnaval, alegria, relaxamento, praias e amores, mas também luta. Como ganhar a vida? Como lidar com a extrema desigualdade? E combater as contradições constantes e diárias?
Nessa ressaca tropical, ele vai para Veneza representar o Brasil – um lugar onde raça e classe andam de mãos dadas; onde a ideia de modernismo falhou, afinal, tudo que nasce por aqui já é ruína; onde a ruralidade atravessa e afronta o projeto civilizatório das cidades; onde as relações de trabalho foram construídas com resquícios de um sistema escravocrata; e, a construção da ideia de um país “mulato” ou “mestiço” oferece, até hoje, suporte a maneiras muito perversas de racismo.
Confira abaixo 10 trabalhos para entender a obra de Jonathas de Andrade.
1.Educação para Adultos, 2010
Um dos trabalhos mais significativos de Jonathas, a instalação Educação para Adultos é composta por 60 cartazes inspirados no método Paulo Freire de alfabetização criados pelo artista a partir de conversas com um grupo de analfabetas.
A mãe do artista era professora do ensino na rede pública de ensino nos anos 80 e 90 e utilizava, no seu trabalho, uma série de 20 cartazes educacionais impressos na década de 70. Jonathas se influenciou pelo material de trabalho da mãe para criar uma espécie de enciclopédia fotográfica, um arquivo de crônica nacional, ou um plano educador revisado, ampliado e contraditório.
“Os cartazes foram base para uma série de encontros diários com um grupo de analfabetas, durante um mês. O percurso das conversas de cada dia se tornava pauta fotográfica para novos cartazes criados por mim que voltavam para as conversas, criando uma espécie de engrenagem artístico-educacional”, explica o artista.
Já nesse período o artista revelava seu interesse pela linguagem como expressão do que é a nação e também revelava seu método de trabalho sempre baseado em métodos de negociação.
(cortesia do artista e galeria Nara Roesler)
2.Nostalgia, sentimento de classe. 2012
A instalação composta por um mosaico criado a partir de 345 peças de fibra de vidro toma como ponto de partida um painel moderno presente numa casa em Recife. Exemplar da modernidade tropical do nordeste brasileiro, a construção é da década de 60 e, na época da idealização da obra, estava posta à venda para a especulação imobiliária da região. Hoje encontra-se abandonada, mas o painel permanece intacto.
A casa tinha características típicas do modernismo e suas fortes raízes sócio-políticas: sua abertura generosa para a rua é impensável na atual ideologia de violência e segurança e sua estrutura simétrica que conjunta duas famílias combina público e privado.Nesta instalação, os azulejos de cerâmica da casa original são representados por peças de fibra de vidro com volume de 10 cm. O novo desenho ganha, portanto, uma nova dimensão tornando-se uma hiper-reprodução de seu original.
O trabalho traz, ainda, uma compilação de escritos dos arquitetos Marcos Vasconcellos e Flávio de Carvalho sobre arquitetura, humanidade e civilização, dando fôlego político e utópico à obra que contrasta com o tipo de abordagem política contemporânea. Estes textos são “invadidos” por algumas das peças geométricas indicando uma vontade do artista de indicar que ali tudo já era ruína.
(cortesia do artista e galeria Nara Roesler)
3.O Levante, 2012-2014
O projeto surge da articulação feita pelo artista para tornar possível a 1a Corrida de Carroças no Centro da Cidade do Recife. Como animais rurais são proibidos no Recife, todos aqueles que se movimentam a cavalo pela cidade são invisibilizados do ponto de vista da lei. É interessante notar, aqui, uma observação pertinente do artista: uma cidade que se define como moderna e “civilizada” ainda tem uma presença rural muito marcante. Trata-se de um resumo da contradição que forma o Brasil e cujos reflexos vemos até hoje. “Ao mesmo tempo que eles estão à parte da lógica desenvolvimentista da cidade (e do País), o contraste de sua presença com o trânsito, o asfalto, as torres de 40 andares e todo um projeto de civilização que vai na sua contramão, os carroceiros e seus cavalos são ecos fortíssimos de ruralidade que aponta para as origens desta região”, explica o artista.
Somente tratando a corrida como uma cena para um filme — podendo portanto ser considerada em certa medida “ficção” — é que o evento se tornaria viável e poderia ter as autorizações necessárias para acontecer do ponto de vista oficial. O trabalho, portanto, foi composto por 3 partes: (1) o evento da corrida de carroças; (2) o vídeo O Levante (2013), com filmagens da corrida, ao som do aboiador João Aboiador, cantoria feito para justificar seu acontecimento; e (3) a documentação fotográfica e textual que deu forma a uma instalação intitulada O que Sobrou da Primeira Corrida de Carroças no Centro do Recife, em 2014. Jonathas conclui: Pouco a pouco fui me dando conta que os carroceiros são apenas mais um lastro de um circuito de ruralidade muito maior, que atravessa toda a cidade e que carrega um projeto civilizatório apoiado em outro paradigma — próprio, não-hegemônico, uma para-civilização rural que coexiste no Recife proto-urbano do Brasil neopotência subdesenvolvimentista”.
Ele joga luz, entre o concreto que transformou a cidade, para os carroceiros que carregam restos de comida e verduras dos mercados para os vários pequenos currais em quintais de suas casas em diversos lugares da cidade; para as feiras de cavalo que acontecem durante toda a semana; para as corridas competitivas de argolinha acontecem com frequência, além do Ramo – a grande procissão de cavaleiros e carroceiros que acontece todo fim de ano.
(cortesia do artista e galeria Nara Roesler)
4. 40 nego bom é um real, 2013
“Nego Bom” é o nome de um doce popular no Nordeste brasileiro feito de banana queimada. Nos mercados locais, existe uma frase popular para venda do doce que se pode escutar alto: “40 nego bom por um real !” – chamada que oferece título ao projeto.
O artista ressalta, aqui, que o uso coloquial da palavra “nego” geralmente é usado com carinho e intimidade, mas linguisticamente não deixa de carregar conotações racistas e pós-coloniais em seus lastros históricos.
A instalação é dividida em duas partes. A primeira, é composta pela receita de feitura do doce passo a passo, ilustrada por impressões pintadas. O processo leva em consideração uma fábrica fictícia envolvendo 40 trabalhadores e toda a linha de produção — colhendo as bananas no bananal, carregando para o porão, descascando, amassando, cozinhando as bananas com açúcar, encontrando o ponto exato, deixando esfriar, separando em pequenos quadradinhos e embalando em papel transparente.
A segunda parte é uma espécie de tabela de contabilidade de quanto cada um dos trabalhadores custa para a fábrica. Entretanto, em vez de lidar apenas com a função desempenhada e o valor de cada salário, a tabela leva em consideração aspectos pessoais da personalidade e a relação com a figura do dono da fábrica: amizade, troca de favores, ou qualquer tipo de conexão passam a ser as moedas de medida. As histórias criadas pelo artista são baseadas em histórias reais e testemunhos colhidos por meio de formulários e pesquisas para o projeto.
Jonathas ressalta, mais uma vez, como o Brasil de ontem e de hoje tem a fronteira entre empregados e patrões borrados – um claro reflexo de nosso passado escravocrata, onde o profissional com o pessoal, de uma maneira tão brasileira quanto complexa. “Com este projeto, quis me aproximar da temperatura atual em relação ao pós-colonialismo, pós-escravidão, e trabalho barato. Existe um crença que a cultura brasileira é estruturada em suavidade interracial e camaradagem” explica Jonathas.
Confira algumas das histórias no site do artista.
Jonathas aponta Casa Grande e Senzala, do sociólogo Gilberto Freyre, como uma referência para descrever as relações entre colonizadores europeus, escravos africanos e índios nativos como o nascimento do Brasil mulato. Trata-se da primeira teoria local para a gênese da brasilidade, embora sempre polêmica, acusada de ser otimista em naturalizar relações históricas perversas ao descrever uma espécie de democracia racial.
(cortesia do artista e galeria Nara Roesler)
5. Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste, 2013
Entre os anos de 2012 e 2013, Jonathas fez anúncios nos classificados de um jornal popular do Recife que procuravam trabalhadores interessados em posar para o cartaz do Museu do Homem do Nordeste. Mais uma vez o diálogo e diferentes níveis de negociação aparecem no trabalho do artista alagoano. Vários telefonemas em resposta ao anúncio davam início a conversas em torno da convocação e de como cada um se imaginava representando a região. O artista instigou cada participante, assim, a trazer seu próprio repertório de vida para representar um novo imaginário do nordeste brasileiro. Jonathas cita, aqui, novamente Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala – o Museu do Homem do Nordeste não é uma mera invenção do artista, ele foi criado em 1979 pelo sociólogo e ainda existe em Recife. Considerando as ressalvas feitas hoje de suas teorias, parece necessário reavaliar como esse imaginário do nordeste brasileiro foi construído e como ele pode ser desconstruído.
Além dos telefonemas, fotografias eram feitas diante de situações de trabalho encontradas na rua, ao acaso. As fotografias geraram 77 cartazes que compõem a instalação final. Além dos cartazes e de alguns anúncios, o visitante pode conferir registros de seis dos encontros e conversas feitos para o projeto.
O anúncio era simples e direto: “Procuro um homem moreno, forte e trabalhador – feio ou bonito – para fotografia do cartaz do Museu do Homem do Nordeste” . A ideia do trabalho braçal ligada a esse homem brasileiro mulato presente em 40 nego bom é um real aparece novamente. Nesse período o artista questionava também a erotização desse homem nordestino, mulato e trabalhador, assim como eram erotizados os escravos e escravas vindos da África.
Pouco tempo depois o artista criou, no MAR, sua versão do Museu do Homem do Nordeste. “Enquanto o museu original revisa a história colonial e identidade da região a partir de uma reunião de artefatos e objetos históricos, o museu homônimo retoma os rastros e consequências da história tomando as relações do presente e passado recente como pretexto e objeto. Foca em componentes das relações afetivas e de trabalho, e no quanto estão atravessadas por aspectos de poder e hierarquia que devassam as noções de raça e classe”.
6. ABC da Cana, 2014
Inspirado nos desenhos de Luís Jardim para o projeto gráfico da revista Brasil Açucareiro, de 1957, o artista convidou trabalhadores da Refinaria TABU a performar o abecedário durante uma pausa do corte da cana em Condado-PE. Montando as letras de forma coletiva e didática, eles recriam o contexto destinado ao trabalho no canavial, para formarem o alfabeto utilizando o próprio material de campo deles, a cana de açúcar.
Além do interesse na linguagem para a construção da identidade brasileira, Jonathas aponta mais uma vez para questões de raça e classe. Não foi à toa, afinal, que o universo de trabalho escolhido é o da cana – uma das principais economias do Brasil que instigou o comércio de escravos africanos.
7. O peixe, 2016
Trabalhando com os limites entre ficção e realidade, documentação e fantasia, Jonathas sugere um ritual comum na costa nordeste do Brasil: abraçar os peixes logo após a pesca até sua morte por asfixia.’Um abraço limite – rito de passagem – onde o homem retoma sua condição de espécie e, olho no olho diante de sua presa, a acalma através de uma ambígua sequência de gestos: afeto, violência e dominação”, define o artista.
Neste trabalho, Jonathas nos propõe pensar em como a naturalidade da dominação pode esconder a espinha dorsal de relações, constituídas pelo constante exercício da força, poder e devoração. O filme foi feito a partir de uma proposição que ele fez a dez pescadores do sul de Alagoas, onde o rio São Francisco encontra o mar. O artista conta que não sabia como eles reagiriam, e o resultado visto no filme é, até certo ponto, natural. Existem momentos de tensão e luta entre espécies e inesperadas cenas de carinho e respeito absoluto.
8.Jogos Dirigidos, 2019
O filme Jogos Dirigidos parte de mais uma experiência do artista com a linguagem. Na comunidade de Várzea Queimada, povoado no Sertão do Piauí com cerca de 900 habitantes, há um alto índice de surdos-mudos. O acesso à água e aos investimentos públicos é escasso, assim como a aprendizagem da Libras oficial. Diante de todas essas dificuldades, a comunidade de surdos-mudos de Várzea Queimada criou a sua própria linguagem.
O filme parte mais uma vez de diálogos e negociações. Jonathas filmou 18 personagens da cidade “contando” experiências de vida e parte dessas “falas” foram traduzidas com legendas sucintas numa didática e estética parecida com a de Educação para Adultos. Desta forma, os gestos são ligados às palavras, sistematizando o léxico gestual de Várzea Queimada como se estivéssemos diante de um vídeo educativo que ensina uma nova língua, um novo vocabulário, e nos transporta para o universo e questões próprias do local.
O título do filme parte de um livro sobre dinâmicas de grupo, que o artista usou como ponto de partida, para o aquecimento emocional e integração da comunidade. “ Mas todos os exercícios dependiam de gritar, ouvir uma música, alguém falar alguma coisa – começou com esse impasse. O filme tem situações na natureza, com dinâmicas que eles foram fazendo a partir de propostas minhas, mas que eram adaptadas para o que eles achavam que faziam sentido. Espontaneamente, pedi que contassem histórias e eles começaram uma verborragia de narrativas da vida deles”, explicou o artista em entrevista para o Estado de São Paulo.
9.Infindável Mapa da Fome
O projeto foi concebido em 2019 em colaboração com as mulheres da etnia Kayapó da aldeia Pukany, território Menkragnoti, no sul do Pará. Tudo começou quando um grupo de mulheres Kayapó foi convidado para intervir sobre mapas históricos do território Kayapó demarcado e protegido por lei, realizados pela Sudene em parceria com o exército brasileiro durante os anos 1970 a 1990.
Elas desenham, sobre os mapas, os grafismos ancestrais de seu povo, também utilizados cotidianamente para pintar sobre o corpo. Cada mapa foi feito individualmente e cada um deles corresponde a um significado diferente. “Cobrir os mapas com os grafismos Kayapó propõe uma conversa, um fricção entre dois tipos de desenhos: o primeiro, ocidental representado pelo mapa de acordo com sua lógica delimitando um território para medi-lo e explorá-lo; o segundo, um desenho indígena representado por um gesto natural do seu modo de vida, expresso na tinta e traço sobre o papel”, explica o artista.
A cultura Kayapó, representada pelos grafismos, acaba tomando todo o espaço do mapa ultrapassando os limites do território demarcado que carrega a lógica própria da cultura do homem branco. Em tempos de discussões sobre demarcação de territórios indígenas, o desenho Kayapó nesse trabalho torna-se ainda mais potente, marcando, simbólica e poeticamente, uma presença política que transborda os limites da presença cultural indígena para um território-além do vermelho da linha que limita o seu território no papel.
Além do mapa, o artista fotografou a mão das mulheres executando os trabalhos e as expôs juntas, transformando os gestos artísticos em uma imagem de resistência coletiva. As elaborações de mapas e fotografias dão forma, portanto, a três obras que compõem a série: Fundamento Kayapó Menkragnoti (grande mapa); Mulheres Kayapó Menkragnoti (políptico de fotografias) e A mão Kayapó Menkragnoti (dípticos de fotografia e mapa).
(cortesia do artista e galeria Nara Roesler)
10.Teatro das Heroínas de Tejucupapo, 2022
Em 1646 tropas holandesas invadiram o Brasil. Neste contexto, atacaram o distrito de Tejucupapo da atual cidade pernambucana de Goiana. Foram recebidos, entretanto, com armadilhas domésticas: objetos encontrados nas casas das mulheres e água fervendo com pimenta. Há 30 anos, a conhecida batalha de Tejucupapo, ou batalha do Monte das Trincheiras, vem sendo encenada a céu aberto pelo grupo Teatro das Heroínas de Tejucupapo. Interessado pelo fato histórico e o pelas mulheres heroínas de Pernambuco, históricas e contemporâneas, Jonathas fez uma parceria com o grupo de teatro.
As mulheres encenaram o embate para uma série de fotografias, que sofreram intervenção gráfica com setas e marcações que enfatizam a ideia de estratégia, e os soldados holandeses são representados por jovens da cidade, como acontece nas apresentações no final de cada mês de Abril. Na representação feita para o artista, entretanto, elas não usavam roupas de época, como acontece no teatro, mas as vestimentas que usam no cotidiano. Aqui o artista enfatiza como a passagem de tempo não muda o fato delas ainda precisarem ser heroínas enfrentando batalhas diárias.
Para completar a série, Jonathas criou um extenso inventário dos objetos pessoas encontrados em quatro casas, revelando as armas diárias de hoje: a do teatro das heroínas, a casa de Dona Luzia, Dona Elza e Dona Severina. Cada objeto é acompanhado de um texto que fala de ações cotidianas vinculadas ao objeto, e como a luta do dia a dia – simbólica e material – está atravessada na história desses objetos.