Um dos grandes desafios em qualquer processo criativo de artista é conseguir extrair algo do seu íntimo – seja dos seus sentimentos, vivências ou cosmovisão – e transformá-lo em uma obra para o mundo, ou seja, que dialogue e possa ser fruída por diferentes pessoas. Poucos artistas ao longo da história souberam equilibrar evidentes inscrições autobiográficas em suas produções, sem torná-las excessivamente autocentradas em seus autores e fechadas em si mesmas. Saber manusear nos limites desta linha tênue exige uma maturidade lapidada, para então fazer da sua sensibilidade particular um espelho coletivo.
Leonilson é uma dessas joias raras. Em seu curto período de vida, com poucas linhas e incorporando a palavra como elemento gráfico, conseguiu criar uma linguagem muito própria, não apenas narrando sua vida, mas criando uma espécie de biografia ficcional cheia de camadas.
Para quem o vê hoje, em uma era onde tudo se revela tão abertamente e ao mesmo tempo de forma tão superficial na internet, pode ser difícil de reconhecer, à primeira vista, a potência da relação delicada entre exposição e intimidade criada pelo artista – nosso primeiro pilar que sustenta conceitualmente sua produção. Leonilson é visceral, depositando suas vulnerabilidades e auto-reflexões mais profundas em desenhos muitas vezes miúdos em seus suportes, convidando os espectadores à aproximação para visualizá-los. Ainda que muitos amigos e colegas de Leonilson apontem que a leitura de seus trabalhos como reflexos de uma personalidade tímida e introspectiva não corresponda à realidade, Leonilson foi completamente honesto na construção de seu personagem artístico – afinal, assim como qualquer trabalho de arte, sua produção revela apenas uma das muitas camadas de sua vida.
Outro conceito-chave é o diário. Seja literal ou enquanto conceito, o diário é presente tanto nos processos criativos do artista, quanto nas peças finais. Os formatos mais tradicionais, em cadernetas que misturam anotações com desenhos, sempre o acompanharam e foram uma espécie de extensão das telas e papéis que são exibidos em exposições – e vice-versa. Tudo poderia ser incorporado em sua produção, desde uma anotação sobre as despesas telefônicas ou o verso de uma receita médica, até reflexões mais intensas sobre o mundo. Até mesmo seus posicionamentos políticos eram incluídos nas obras, mas não de maneira panfletária, e sim como algo inerente às suas vivências diárias. Em 1991, o artista explicou: “Eu percebo a segregação que existe. E eu, é óbvio, faço parte de uma dessas minorias, ou de mais de uma. Várias coisas que eu falo são objetos de segregação. […] Então eu queria fazer um trabalho mais público, mas que não deixa de fazer parte do meu diário. É uma coisa que eu sofro todo dia, é uma coisa que eu vivencio todo dia.”
No início de 1990, Leonilson também passou a gravar áudios como uma espécie de diário pessoal, na intenção de depois transformá-los em uma publicação autobiográfica – vale muito a pena a escuta deste material reunido no documentário A Paixão de JL e exibido no primeiro subsolo do MASP, em “Leonilson: agora e as oportunidades”.
A atual exposição do museu paulistano, se concentrou em apresentar a produção dos últimos cinco anos de vida do artista, exibidos entre cinco salas do primeiro andar da instituição. Avançando cronologicamente entre cada uma delas, o visitante experiencia as dilatações desse grande corpo de trabalho, culminando no último espaço: 1993, o ano de sua morte.
Aqui o destaque fica para a remontagem de “Instalação sobre duas figuras”, o último trabalho do artista, que se impõe no espaço com uma energia arrebatadora, evocando o terceiro ponto-chave de sua produção: a presença que pulsa por meio da ausência. Na instalação, criada originalmente para a Capela do Morumbi, ele reflete sobre o fim de sua vida, tensionado pelas complicações decorrentes do vírus HIV. As peças compostas por roupas brancas e cadeiras, dispostas em uma composição triangular – assemelhando-se à ideia de trindade –, ecoam a falta física do artista que faleceu poucas semanas antes da inauguração original. Aliás, vale dizer, que em toda a exposição, que reúne mais de trezentas peças, não há nenhum retrato do próprio artista, nos convidando a enxergá-lo exclusivamente por meio de sua obra.
“Instalação sobre duas figuras” materializa as tensões entre vida e morte, o sagrado e o profano, os prazeres carnais e divinos, a bondade e a maldade do ser – princípios complementares evidenciados inclusive nas palavras bordadas em cada peça de roupa. O que nos leva ao quarto ponto central de seu trabalho: a dualidade e a ideia de “duplo”.
A partir de 1989, esses dois conceitos passam a ser incorporados na produção de Leonilson de forma mais frequente. Desde então, é comum vermos figuras de silhuetas masculinas ou objetos idênticos em pares, espelhados ou interligados, sugerindo a fusão de dois corpos em um só. A dualidade também se desdobra conceitualmente em obras que contrastam princípios opostos: diversos desenhos do artista apresentam personagens posicionados entre duas palavras antagônicas, reforçando contradições fundamentais que permeiam a existência humana.
O quinto conceito-chave que podemos destacar é o entrosamento entre o sagrado e o profano, uma relação, mais uma vez, marcada pela ambiguidade. Embora sua família católica sempre o tenha acolhido, Leonilson enfrentou o paradoxo de uma fé que o rejeitava por sua orientação sexual. A religiosidade, então, expressa por símbolos como terços e cruzes, além de palavras do vocabulário cristão e até fazendo citações a personagens bíblicos, é uma constante em sua produção. Para além da doutrina, a compreensão do espiritual em seu sentido mais amplo também interessava o artista. Em um bordado sobre feltro verde, criado em 1992, ele desenha uma silhueta masculina acompanhada da palavra “templo”, evidenciando seu entendimento do corpo como espaço sagrado.
“Leonilson: agora e as oportunidades” é uma mostra que desafia a tradução para o formato digital, onde a pressa impera e a experiência é fragmentada. Apesar do frenesi gerado em torno de sua inauguração – como reflexo das muitas relações afetivas que as obras de Leonilson despertam no público –, a exposição é uma rara oportunidade de experiência em um ritmo desacelerado, em sintonia com a introspecção que a obra do artista exige.