Sendo a arte de Rubem Valentim baseada em signos e arquétipos religiosos, pode ela ser chamada de abstrata?
Nascido em 1922, emblemático ano em que os paulistas buscam entender o que seria a arte essencialmente brasileira a partir da ressignificação das escolas europeias, Valentim foi o primeiro a propor um diálogo entre o abstracionismo e a cultura negra do país. O artista baiano provém de um estado que, assim como Pernambuco e outros fora do eixo Rio-São Paulo, propôs um modernismo que resgatasse o legado africano ao invés do europeu.
Apesar de frequentar os terreiros de candomblé até o final de sua vida, e dessa prática de fé ter impactado decisivamente sua produção, suas referências são bastante complexas e possuem as mais variadas origens religiosas e culturais. Segundo o artista e curador Bené Fonteles, Valentim tinha uma biblioteca de 2 mil volumes, bebia na cultura dos maias e dos astecas, além de consultar com frequência a filosofia chinesa I Ching. Além disso, várias de suas composições triangulares aludem à Santa Trindade católica.
“Valentim é um dos artistas que, de maneira mais completa e ambiciosa, levou a cabo o projeto antropofágico.” – afirmou Fernando Oliva, curador de Construções afro‐atlânticas , mostra dedicada ao artista no MASP.
Ou seja, sua produção reflete o hibridismo cultural brasileiro, e é justamente esse caráter excepcional que a torna tão única e facilmente indentificável. Formal demais para ser figurativista e alegórico demais para ser abstracionista, a obra de Valentim não pode ser classificada dentro de regras rígidas da História da Arte e tentar “enquadrá-la” pode ser um equívoco.
Ao mesmo tempo, durante toda a sua trajetória, Valentim enfrentou diversas tensões por não ser incluído e “não se encaixar” nos movimentos já estabelecidos. Ele fez parte do chamado grupo “Novos artistas Baianos”, mas se dissociou quando alguns membros passaram a defender o “realismo socialista”, enquanto ele almejava uma maior independência estética. E apesar de ter participado de grandes eventos mundiais, como a 31ª Bienal de Veneza e o Festival Mundial de Artes Negras de 1966 em Dacar, do ponto de vista mercadológico, Valentim só teve grande reconhecimento e atingiu altos números de venda após a sua morte.
“Apenas após o seu Manifesto ainda que tardio, em 1976, que Valentim deixa explícito que sua obra, e toda sua ‘linguagem plástico-visual-signográfica’, estão relacionadas aos símbolos, ferramentas e instrumentos da cultura afro-brasileira e ameríndia. Antes disso Valentim pouco titulava seus trabalhos.” – explica a curadora Thaís Darzé. “Esse silêncio até 1976, possivelmente foi uma estratégia de sobrevivência e de proteção de sua obra contra o racismo estrutural existente no Brasil até os dias atuais.”
O retrato do Brasil por meio de Valentim também é refletido no contexto político que frequentemente cerca sua produção. Apesar de seu principal assunto poético não dar foco a esta vertente de ativismo, sua obra já foi e é ainda hoje palco de grandes cenas da política brasileira.
Na década de 1980, seu painel Templo de Oxalá foi instalado no Palácio do Itamaraty, justamente o local que é cenário quando o presidente da República toma posse de seu cargo frente a outros presidentes convidados e à diplomacia internacional.
Valentim morou em Brasília entre 1970 e 1980, e sempre sonhou que suas obras fossem transformadas em esculturas públicas na cidade e, inclusive, fez o projeto Monumento Brasília em 1977 – nunca realizado.
Em 2020, suas serigrafias foram testemunhas da desastrosa entrevista de Regina Duarte, na época secretária especial da Cultura, à CNN. A cena contrastava as discrepâncias de um governo marcado pelo agravamento das tensões com comunidades indígenas, pela proliferação do desmatamento, o distrato com a população preta e as falas da secretária minimizando as violências da ditadura militar, tudo isso em paralelo com a obra que ressalta elementos afro-indígenas.
Vale ressaltar que essa posição não é alheia ao artista. Uma de suas inabituais obras em que inscreve palavras é Tupan x Mamon. Sobre ela, ele já comentou em entrevistas: “Tupã é o deus da natureza, dos ecologistas, dos indígenas, da harmonia e da beleza. Mamon é o deus da iniquidade, da avareza, da ambição, é o deus dos madeireiros e dos garimpeiros.” Há aqui, portanto, de forma mais direta, uma sugestão de extermínio de qualquer força gananciosa que mate indígenas ou a flora nacional, desequilibrando a harmonia entre homem e natureza.
Por tudo isso, podemos dizer que Rubem Valentim segue vivo e presente em nosso meio, e celebrar seu centenário em um ano de eleições no país é muito memorável. Viva Valentim!