Artista Aposta: Iagor Peres

O artista carioca criou sua própria matéria-prima semelhante à peles humanas, mas que extrapolam a corporeidade

por Giovana Nacca
4 minuto(s)
Retrato de Iagor Peres por Wallace Domingues – Cortesia galeria HOA

Beleza, asco, estranhamento, vontade de tocar, vontade de mastigar… São algumas das primeiras impressões que o público costuma relatar diante das esculturas de Iagor Peres. Alguns podem olhar, por exemplo, a obra Sem Título #2, da série Estrutura para campos densos, exposta em 2019 no Centro Cultural São Paulo, e se encantar com as nuances azuis em meio aos marrons, e enxergar a estrutura em ascensão como um perfeito e delicado equilíbrio, quase como se a escultura posasse elegantemente no espaço. Outros já podem se ater aos aspectos de pele esgarçada e interpretar com uma aura mórbida. Mas é nessa dubiedade que pairam nossas noções sobre vida e morte, não é mesmo?

Tendo praticado a dança e o teatro desde a adolescência, Peres mergulhou no campo das artes plásticas de forma completamente fluida e natural, não como uma grande decisão deliberada, mas talvez como único caminho possível. “Eu acho que nunca na minha vida trabalhei em outra coisa que não fosse no campo das artes”, ele reflete.  

Aos poucos o artista foi migrando para a performance até se desvincular do teatro e da dança completamente. A performance Ação Acopla, apresentada em 2016, em Recife, pode ser entendida como um trabalho embrionário, por já revelar seu interesse em investigar o potencial poético e discursivo das materialidades em seu estado bruto. Nela, Peres prepara o cimento de secagem rápida para depois, sentado, cobrir a maior parte de seu corpo e, assim, permanecer por cerca de cinco horas.

O material, usado em todo tipo de construção das cidades, enrijece na pele do performer; o paralisa; e, o machuca, principalmente quando ele precisa retirá-lo – cena que não é vista pelo público, mas que certamente está implícita. Ali o cimento carrega também a memória dos trabalhadores envolvidos com eles, muitas vezes em uma relação de violências estruturais da sociedade que perpassam pela precarização das condições de trabalho, indissociando o trabalhador de seu ofício e, consequentemente, o “coisificando”. 

Dando passos mais adiante, Iagor passa a expandir suas obras para além do próprio corpo. Atualmente, os mais conhecidos são desdobramentos da pesquisa com a pelematerial, uma substância, criada pelo artista e de receita misteriosa, que possui aspecto elástico, mas que depois de um tempo se aproxima de uma pele seca e mais consistente.  Criada a partir do ambiente íntimo de cozinha alquimista, ela nasce como uma ideia de extensão do corpo do próprio artista, mas vai para o mundo completamente emancipada e desobediente.

Organização Queloide, 2018, Iagor Peres

O artista já apresentou essas “peles” nos mais variados suportes. No início, derretia sobre seu corpo, depois a suspendeu com fios transparentes, quase como se estivessem expostas em um escasso açougue. E logo em seguida, ela ganha sua versão estendida em uma estrutura de ferro, que se firma no chão e se apresenta de pé, como se encarasse o espectador de frente. Independente da versão, provavelmente nenhum espectador verá o mesmo trabalho, mesmo quando ele é reapresentado, afinal o material criado é sensível à temperatura e umidade do espaço que o cerca, e por isso está sujeito às constantes transformações. 

“Mas o que esses trabalhos representam?”, você pode estar se perguntando. Definitivamente, como o próprio artista explica, nada. Não são a representação e nem a abstração de algo, são por si só alguma coisa. Possuem vida independente, mas uma vida completamente cíclica, que depois de passar pelas exposições retornam à cozinha de Iagor para serem reanimadas. 

Certa vez, quando o artista teve que transportar uma obra para a Alemanha, para participar de uma residência artística, ela permaneceu integralmente intacta. “Eu achei que ele [o trabalho] tinha morrido de alguma forma, mas aí eu voltei para Brasil e quando cheguei ele estava sambando dentro da minha mala”, lembra o artista ao explicar que essa particularidade dinâmica é o que sustenta seu conceito. Pelo caráter amorfo, essas esculturas, apesar de remeterem à pele, são desumanizadas, refletindo o cerne do processo escravagista que aconteceu pelo mundo. Algumas delas são bastante agigantadas, chegando às vezes em torno de cinco metros, por exemplo. “A minha sensação é de que essas esculturas, ou esses corpos, deveriam ser de uma dimensão quase que do tamanho do problema.”, explica o artista.

Da Frequencia no Tempo – Parque de Escultura – VIla Velha – ES

Em breve o artista estará em Barcelona para realizar 14 meses de formação no Programa de Estudos Independentes do MACBA, que certamente germinarão bons frutos para acompanharmos. 

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