Quem foi Sam Gilliam?

O artista pioneiro em libertar a pintura de seu suporte permaneceu comercialmente desvalorizado até quase o fim da vida e veio a falecer no último final de semana

por Giovana Nacca
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Sam Gilliam
Retrato de Sam Gilliam por Marvin Joseph/The Washington

No último final de semana perdemos um grande nome do abstracionismo. O pintor abstrato afro-americano Sam Gilliam morreu aos 88 anos, dia 25 de junho por insuficiência renal. A notícia foi confirmada pela Pace e David Kordansky, as duas galerias que representam o artista.

Em 1972, Gilliam se tornou o primeiro artista negro a representar os Estados Unidos na Bienal de Veneza. Apesar deste e de outros reconhecimentos, seu trabalho permaneceu comercialmente desvalorizado em comparação com o de seus colegas brancos até os últimos anos. 

Ainda que tenha emergido no auge do Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos, o artista nunca foi de protestos políticos e sempre relutou para que seus trabalhos não fossem reduzidos ou definidos por sua raça. Na época, muitos artistas afro-americanos usavam a figuração para representar sua realidade e estimular mudanças sociais, mas em paralelo, Gilliam optou por explorar a potência da abstração.

Sam Gilliam
Obra La Couleur en fugue (1970) na Fondation Louis Vuitton. © Sam Gilliam / ADAGP, Paris 2022 © Fondation Louis Vuitton / Marc Domage

Nascido no Dia de Ação de Graças de 1933, em Tupelo, Mississippi, ele foi o sétimo de oito filhos. Em 1962, mudou-se para Washington porque Dorothy Butler, com quem se casaria, conseguiu um emprego no The Washington Publicar – ela foi a primeira mulher negra contratada como repórter pelo jornal. Essa foi uma época muito propícia para Gilliam estar em DC, afinal era possível ver músicos de jazz famosos nas Bohemian Caverns e se misturar com outros artistas nas inaugurações de galerias em Adams Morgan. Foi lá que Gilliam conheceu o artista Thomas Downing e o pintor  pioneiro da Washington Color School, Kenneth Noland. A convivência acelerou seu processo de transição da pintura representativa para a abstração. 

Ele viveu o auge da pintura americana do pós-guerra: o expressionismo abstrato, a Escola de Nova York e o movimento Color Field consolidaram um frenesi de tintas respingadas, sobretudo para um círculo de artistas bastante branco e masculino. Gilliam, juntamente com contemporâneos como Howardena Pindell e Alma Thomas, deixaram sua marca no meio ao afirmar a autonomia criativa dos artistas negros nos Estados Unidos.

Mas o marco que caracteriza seus trabalhos desde essa época até hoje, foi seu pioneirismo em introduzir a ideia de tela sem suporte. Inspirado por mulheres pendurando roupas em varais que ele observava da janela de seu ateliê, Gilliam abandonou por completo a moldura e a sustentação da tela. Assim, ele inaugura as suas famosas pinturas em lençóis, em 1968, definindo uma nova linguagem pictórica por meio da qual ele conseguia explorar o potencial das superfícies e a extensão dos campos de cor.

Essa mudança simples, possibilitou um caráter escultural, que ia de encontro com a ideia de que a pintura é por essência bidimensional, mas também invoca o caráter instalativo colocando as condições do espaço expositivo para jogo. É curioso pensar também, que na língua inglesa, “stretcher” é uma palavra que define tanto a estrutura que estica a tela da pintura, quanto pode ser traduzida como “maca”, por isso pode-se dizer que o artista praticamente libertou a pintura de seu suporte. “A superfície não é mais o plano final do trabalho”, disse ele em entrevistas de 1989-1990. 

Suas abstrações definitivamente não são simples, o que torna difícil categorizar o artista dentro de algum grupo ou movimento. Seu processo criativo é pautado na improvisação inspirada no jazz pela complexidade compositiva, mas também por ser “uma reafirmação da identidade cultural”. Em uma entrevista para o The Washington Post, ele explica: “Existem teorias na arte, assim como na música (…) Integrar música clássica e jazz, é a mesma coisa que você faz na pintura. Do chão à parede. Pendurado no teto. Você apenas reestrutura o que faz em termos de sua história.”. 

Sam Gilliam
Fan Craze (1973) de Sam Gilliam

Nos últimos anos, seu trabalho tem ganhado cada vez mais reconhecimento, e sua história tem sido frequentemente caracterizada como um “retorno” ou uma redescoberta, embora ele não estivesse perdido ou largado a profissão. Em 2019, aos 85 anos, Gilliam se juntou ao time da Pace Gallery, garantindo a representação de uma galeria de Nova York pela primeira vez em sua carreira. Atualmente, seu trabalho também é representado pela David Kordansky, e está nas coleções mais reverenciadas do mundo como no Metropolitan Museum of Art, Museum of Modern Art NY, Tate Modern em Londres, Musée d’Art Moderne em Paris. Se, em alguns períodos de sua extensa carreira, Gilliam pareceu invisível, talvez tenha sido porque nós nos recusamos a vê-lo.

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