Wes Anderson retrata mercado de arte em filme-homenagem ao jornalismo

A inspiração passou pelo art dealer Joseph Duveen, a crítica Rosamond Bernier e artistas Willem De Kooning, Frank Auerbach, entre outros

por Beta Germano
10 minuto(s)

Descrito por muitos como uma “carta de amor ao jornalismo”, A Crônica Francesa – último filme de Wes Anderson apresentado no último festival de Cannes, é também uma satira sobre o mundo da arte. Com um elenco estrelar, direção de fotografia de Robert Yeoman e set design de Adam Stockhausen, o filme narra a história da edição final de uma revista suplementar para o jornal fictício inspirado, dizem as boas línguas do jornalismo,  nos artigos da revista The New Yorker em seus anos de glória, em meados do século 20.

 O roteiro se desenrola por meio de três matérias ou narrativas ( inspiradas em fatos ou personagens reais) descritas pelos colunistas para a fatídica edição:  a poesia e inocência de um protesto estudantil; o perfil de um chef que acaba virando um thriller de assalto; e, a história de um artista insano. Há, ainda, um diário de viagem narrado por Owen Wilson enquanto explora a cidade francesa Ennui-sur-Blasé em sua bicicleta. 

Benicio Del Toro interpreta o artista Rosenthaler em A Crônica Francesa
Benicio Del Toro interpreta o artista Rosenthaler em A Crônica Francesa

A primeira das três partes em estilo de antologia, “The Concrete Masterpiece”, se passa numa prisão, onde o artista Rosenthaler ( Benicio Del Toro) está cumprindo pena por assassinato. Sua maior inspiração é Simone – uma agente penitenciária, interpretada por Léa Seydoux, que posa para o artista delinquente e comanda com rédeas curtas a relação artista-musa.  A pintura Simone, Naked, Cell Block‐J Hobby Room logo chama atenção de Julian Cadazio, vivido por Adrien Brody. Trata-se de um marchand preso, de acordo com o narrador,  por sonegação de imposto! Começa aí uma hilária história com toques precisos e afiados da realidade.  

Rosenthaler e sua musa, Simone, em A Crônica Francesa
Rosenthaler e sua musa, Simone, em A Crônica Francesa
Simone em A Crônica Francesa
Simone em A Crônica Francesa
Julian Cadazio, vivido por Adrien Brody, e o artista  Rosenthaler, interpretado por Benicio Del Toro
Julian Cadazio, vivido por Adrien Brody, e o artista Rosenthaler, interpretado por Benicio Del Toro

Cadazio seria Joseph Duveen, um importante dealer que, na primeira metade do século 20, fez fortuna vendendo obras de Old Masters para os ultra-ricos. “Duveen percebeu que a Europa tinha muita arte e a América tinha muito dinheiro, e toda a sua carreira surpreendente foi o produto dessa simples observação.” – escreveu S. N. Behrman na New Yorker de 1951. Mas Anderson se inspira em outra jornalista para criar a crítica de arte para construir sua trama: Rosamond Bernier foi uma jornalista que palestrava sobre história da arte ( sua especialidade era o acervo do Metropolitan Museum of Art); pilotou seu próprio avião; foi diretora da Vogue; fundou a revista francesa L’oeil; e, foi amiga de Henri Matisse, Leonard Bernstein, Frida Kahlo e Picasso. No filme, ela é evocada por J. K. L. Berensen, interpretada por Tilda Swinton, que apresenta, para uma plateia curiosa, a história de Rosenthaler iluminada por um fascinante vestido tangerina sugerindo o glamour do meio.

Joseph Duveen
O art dealer Joseph Duveen foi inspiração para a criação de Julian Cadazio
Julian Cadazio, vivido por Adrien Brody
Julian Cadazio, vivido por Adrien Brody
Rosamond Bernier
Rosamond Bernier foi inspiração para a criação de J. K. L. Berensen, interpretada por Tilda Swinton
J. K. L. Berensen, interpretada por Tilda Swinton
J. K. L. Berensen, interpretada por Tilda Swinton, em A Crônica Francesa

Duveen moldou os gostos dos milionários americanos mais lendários da época e parece ter inventado o “truque” de construção de valor, convencendo seus clientes a pagar valores astronômicos em obras que muitas vezes eles não entendiam.  Depois de conseguir comprar “Simone, Naked, Cell Block‐J Hobby Room”, Cadazio mergulha na mesma jornada: convencer a alta classe que Rosenthaler é o próximo gênio ( mesmo sob camisas de força) do mundo das artes e aquela pintura abstrata é extremamente valiosa, embora ninguém consiga entender efetivamente o porquê. Cadazio propõe que a família pare de vender Old Masters e comece a promover a “arte moderna”. O diálogo com os tios Joe e Nick sugere ( de modo bastante explícito!) como funciona a cabeça de um art dealer.  

Julian Cadazio: Arte Moderna. Nossa especialidade. Começando agora. 

Joe: Eu não entendo. 

Julian Cadazio: Claro que não. 

Joe: Eu sou velho demais?

Julian Cadazio: É claro que é. 

Nick: Por que essa [pintura] é boa?

Julian Cadazio: Não é boa. Ideia errada.

Nick: Isso não é resposta.

Julian Cadazio: Meu ponto. Você vê a garota nela?

Nick: Não

Julian Cadazio: Ela está aqui, acredite em mim. 

Adrien Brody interpreta o art dealer Julian Cadazio
Julian Cadazio mostra pintura “Simone, Naked, Cell Block‐J Hobby Room” para os tios Joe e Nick

Como Duveen, Cadazio é um vendedor astuto, disposto a pagar qualquer preço necessário para conquistar mercados e afirmar suas próprias ideias, mas Anderson parece não estar interessado na precisão histórica. Dizem que Duveen era charmoso, mas Cadazio é agressivo, um bad boy com, supostamente, uma vantagem no mercado: visão.

Para convencer seus tios do talento de Rosenthaler, ele mostra a imagem de um pardal que desenhou em 45 segundos. Cadazio defende que Rosenthaler poderia fazer arte representativa, mas acha que o trabalho abstrato é melhor. “E eu meio que concordo com ele”, diz dealer aos tios. Depois que a família aceita sua defesa, o marchand começa um trabalho intenso em volta da persona de Rosenthaler entre os membros da imprensa e os grandes colecionadores – o boato corre e a ansiedade aumenta para conhecer e ter algo do novo nome da cena. Carne fresca bem trabalhada, aguça o paladar de consumidores famintos! 

A crônica francesa
Julian Cadazio se depara com a pintura “Simone, Naked, Cell Block‐J Hobby Room” numa exposição de arte terapêutica na prisão
A Crônica Francesa
Cadazio suborna os guardas da prisão para a aguardada revelação da obra-prima tardia do artista a um seleto grupo de ricos colecionadores

Depois de anos investindo em Rosenthaler entra na prisão com uma trupe de críticos e possíveis compradores e imediatamente julga os novos trabalhos de Rosenthaler como um sucesso. Mas parece que ele está mais feliz por ter acertado na aposta quase cega do que pelo trabalho em si. Quando ele descobre que não poderá vender os trabalhos, retira imediatamente os elogios! Saímos do cinema com uma pergunta antiga que talvez nunca seja respondida: Os marchands amam a arte tanto quanto dizem, ou eles são apaixonados pelo dinheiro que ganham? Em seu perfil de Duveen na New Yorker, Behrman escreveu: “Cada foto que ele tinha para vender, cada tapeçaria, cada peça de escultura era a maior desde a última e até a próxima”.

A Crônica Francesa
J. K. L. Berensen narra a história de Rosenthaler, em A Crônica Francesa

Inicialmente Rosenthaler não queria vender sua obra-prima, mas logo é cortado pelo ágil e afiado marchand: “Todos os artistas vendem seus trabalhos. É o que faz de você um artista, vendê-lo. Se não quiser vendê-lo, não o pinte!” Outra questão interessante ressaltada no filme é a fetichização da figura do artista como um ser criador fora da curva, muitas vezes…louco. No mesmo segundo em que convence Rosenthaler a vender Simone, Naked, Cell Block‐J Hobby Room, Cadazio pergunta: “Como você aprendeu a pintar assim? Quem você matou e o quão louco você é de verdade?”.  Uma vez escolhida a aposta, era preciso construir um personagem em torno do artista para valorizar a obra recém comprada pelo marchand. Então, ele completa: “Eu preciso de informações para publicar um livro sobre você. Isso fará de você um artista mais importante”.  Como era de se esperar,  Rosenthaler logo é transformado na nova sensação do mundo da arte, irresistível não apenas por sua visão artística inovadora, mas também por sua doença mental e tendências violentas.

Sandro Kopp pinta a obra-prima do filme A crônica francesa
Sandro Kopp pinta a obra-prima do filme A crônica francesa

Conhecido justamente pela estética impecável e bastante específica, Anderson recrutou três artistas para dar vida às obras de  Rosenthaler: Sandro Kopp auxiliado por Sian Smith e Edith Baudraud. Eles pintaram desde as pinturas iniciais do fictício artista, em um estilo figurativo mais tradicional,  até as  abstrações radicais feitas durante o encarceramento. 

Kopp já tinha pintado uma tela para o filme Okja, dirigido por Bong Joon-ho em 2017, e outra para We Need to Talk About Kevin – ambos também estrelados por Tilda Swinton. Recém formada em artes visuais, Smith foi encarregada de criar os primeiros trabalhos menores de Rosenthaler, enquanto Baudraud e Kopp enfrentavam Simone Naked e os afrescos de 4 metros que marcam o clímax dramático da história: Cadazio suborna os guardas da prisão para a aguardada revelação da obra-prima tardia do artista a um seleto grupo de ricos colecionadores.

Sandro Kopp
Sandro Kopp trabalhando os afrescos do filme
Sandro Koop
A inspiração veio de trabalhos de artistas vicerais como Francis Bacon, Willem De Kooning, Jenny Saville, Frank Auerbach, e Anselm Kiefer

“Wes tinha essa ideia muito clara em sua cabeça. Ele sabia exatamente o que queria – fizemos tantos esboços para cada pintura”, disse Kopp ao Artnet news. “Eu fiz nove versões diferentes de Simone Naked, Cell Block J Hobby Room.” The Perfect Sparrow, um pequeno desenho que Rosenthaler teria concluído “em 30 segundos com a ponta de um palito de fósforo queimado”, de acordo com o roteiro, foi ainda mais difícil. Quando Kopp perguntou a Anderson o que ele tinha em mente, o diretor puxou uma gravura de Albrecht Dürer incrivelmente detalhada. Kopp estima que desenhou cerca de 50 pardais, com Anderson escolhendo os elementos perfeitos – a asa, as sombras, a cabeça – de diferentes versões e compondo-os em um desenho final que seria o pardal perfeito.

O processo dos afrescos parece ter sido totalmente diferente: “Ele me orientou com gentileza e precisão, principalmente por meio de inúmeros e-mails durante a fase de testes. Uma vez que estabelecemos a aparência geral de uma das pinturas, ele foi relativamente indiferente e deixou a maioria das composições e a sequência das pinturas para mim”, revelou em entrevista para a Another Magazine. “Era sobre uma maneira muito instintiva, visceral, quase violenta de pintar (…)Eu estava apenas tentando ser um canal para energia bruta.”, revela. “Na minha opinião, uma obra-prima é uma obra que abre uma porta para o mistério. Algo que afeta você de maneiras inteiramente além das palavras. Gosto desta citação de Wittgenstein: “Do que não se pode falar, deve-se calar.”, completa o artista que se inspirou em trabalhos de Francis Bacon, Willem De Kooning, Jenny Saville, Frank Auerbach, e Anselm Kiefer  para criar uma “relação poderosa, visceral, agressivamente sensual com a pintura”. Ainda é cedo para falar, mas certamente Rosenthaler irá influenciar a produção autoral de Koop. “O filme aborda algumas verdades emocionais e profundas sobre o que significa ser um criador. Não há nada de cínico em nenhum dos personagens. Excêntricos, assassinos ou colecionadores de arte – todos eles de alguma forma acreditam profundamente que a arte é verdadeiramente significativa”, ressalta. As pinturas que não foram escolhidas estão na exposição Desesperadamente Procurando Simone na galeria Ebensperger , em Berlim.  Ficção e realidade andam de mãos dadas.

Benicio Del Toro interpreta o artista Rosenthaler em A Crônica Francesa
Benicio Del Toro interpreta o artista Rosenthaler em A Crônica Francesa

Você também pode gostar

© 2024 Artequeacontece Vendas, Divulgação e Eventos Artísticos Ltda.
CNPJ 29.793.747/0001-26 | I.E. 119.097.190.118 | C.C.M. 5.907.185-0

Desenvolvido por heyo.com.br