No meio de uma crise cinematográfica como nunca vista antes – o sucesso do streaming e o isolamento social ameaçam as salas de cinema -, o Festival de Cinema de Nova York abriu de um jeito diferente: os filmes podem ser vistos online ou em espaços abertos pela cidade. Além da aguardada estreia de Small Axe, dirigida pelo artista Steve McQueen, o evento também é palco da inauguração de outro filme que os art lovers vão amar: a atriz britânica Tilda Swinton é a protagonista do curta-metragem intitulado La Voz Humana – primeiro filme de Pedro Almodóvar em inglês – que estreou no Festival de Veneza.
Em 1988, o cineasta espanhol ganhou fama mundial ao escrever e dirigir o filme Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. A trama de uma atriz que tentava o contato com o amante desaparecido e ao receber sua ligação devastadora entra numa densa espiral era inspirada na peça do poeta francês Jean Cocteau, A Voz Humana, escrita no final dos anos 1920. Mais de três décadas depois, Almodóvar voltou ao texto original para uma adaptação mais literal. O curta de 30 minutos homônimo à peça de Cocteau foi gravado na Espanha durante a pandemia e após o fim da quarentena no país.
Tilda interpreta a mulher que espera a visita de um amante há três dias. Quando o homem aguardado liga para o celular dela, o monólogo da protagonista, que atua sozinha, começa. Como todos os outros filmes de Almodóvar há uma estética bold não passa despercebida, principalmente para os amantes de arte, design e moda. O cenário assinado pelo diretor de arte Antxón Gómez e figurino que traz um vestido de Sonia Grande, são dramáticos e dialogam entre si dialogam em um constante jogo de cores, formas e emoções. Gómez, vale lembrar, trabalha há muitos anos com o cineasta e, em 2010, chegou a fazer um leilão com 6 mil peças que já estiveram nos cenários dos emblemáticos filmes de Almodóvar cuja estética é inconfundível.
Na cena principal, Tilda usa um look vermelho que foi apresentado da coleção Spring/Summer 2020 da Balenciaga que conversa com uma tela de Artemisia Gentileschi. Vênus e Cupido foi pintada em 1626 e hoje está no Museo de Bellas Artes da Virgínia, nos Estados Unidos. Trata-se de uma representação da Vênus adormecida, reclinada sobre uma colcha azul e um rico travesseiro vermelho forte, brilhante e profundo – como do figurino – com bordas douradas. Ela não usa roupas, exceto uma fina camada de linho transparente em volta da coxa, e o Cupido a abana com penas de pavão ricamente coloridas enquanto ela adormece. Ao fundo, uma janela através da qual se avista uma paisagem à luz da lua onde se encontra um templo feito para a deusa. O rosto de Vênus tem bochechas cheias, pálpebras pesadas, nariz proeminente e um queixo pequeno e proeminente – todas as características do rosto da própria Gentileschi.
Trata-se, portanto, de um autorretrato e isso é bastante significativo para entender o filme e a escolha da tela. Artemisia foi uma importante pintora barroca italiana com uma história de sucesso e, ao mesmo tempo, de tragédia – bem no espírito de Almodóvar. Considerada hoje uma das mais bem-sucedidas pinturas de sua época, ela foi incentivada a pintar desde sua infância por seu pai Orazio Gentileschi, que era um famoso pintor da cidade de Pisão. Artemisia tornou-se a primeira mulher a ser membro da academia de pintura de Florença. No entanto, passou a vida perseguida e torturada pelo estupro de seu mestre Agostino Tassi, quando tinha apenas 18 anos. Artemisia precisou continuar a ter um relacionamento com Tassi, na esperança de que um casamento com ele viesse a restaurar sua reputação diante da sociedade, mas ele voltou atrás com a promessa de se casar com ela. Orazio acusou Tassi pelo abuso e também alegou que ele havia roubado o quadro Judite decapitando Holofernes de sua propriedade. O principal assunto no julgamento estava relacionado com a virgindade de Artemisia. Se ela não fosse virgem antes do estupro, sua família não tinha direito a prestar queixa. Tassi foi condenado mas nunca cumpriu pena.
Felizmente hoje a artista não é lembrada pela vida cheia de adversidades e sim pelo seu talento. Fortemente influenciada por Caravaggio, ela investiu emtemas bíblicos que envolvessem personagens femininas. No entanto, começou a ganhar fama com as pinturas de retrato – sempre aproximando-se do realismo e usando a dramática técnica do chiaroscuro, caracterizada por um conjunto de contrastes estabelecido pelo uso de cores claras e escuras.