“Por entre as frestas de qualquer cativeiro flutuante o sol se fará presente. E, ao vê-lo nascer, mesmo nós, sem qualquer bússola, saberemos que ele sempre nasce em Guiné. Porque Guiné já não é apenas um lugar no mapa. É a imaginação livre de onde o coração se aquece e as raízes ancestrais mais profundas se esgueiram na terra dura. A cada dia, a iluminação amarela que vem dos céus será saudade. E quando o sol tocar os poros negros desde o lado de cá do Atlântico, ele ja queimou a tez daqueles que estão ou estiveram do lado de lá”- parte da narrativa do filme O sol sempre nasce por Guiné , de Tiago Sant’Ana, esse trecho amarra bem a mensagem que o artista baiano busca passar em Irmãos de Barco, sua primeira individual na galeria Leme.
Interessado por reflexões sobre o passado colonial do Brasil e na desconstrução de discursos dominantes, Sant’Ana nos apresenta de forma poética as diversas violências associadas à escravização de corpos africanos que chegaram ao Brasil. A viagem é, aqui, seu ponto de partida. É na travessia que os africanos tornam-se “irmãos de barco” sem saber o que esperar do futuro. Haveria futuro? Ou seria só saudade?
No centro da galeria, repousa uma âncora de açúcar propondo a ambiguidade do objeto: para uns ela significa alívio, chegada em um porto seguro, enquanto para outros era só medo, incertezas e angústia. O açúcar está presente no trabalho de Tiago há algum tempo por ser símbolo máximo da escravidão – há, também, uma referência pessoal, pois seu avô lhe contou os horrores que sofreu na lavoura cana de açucar. “Já ao final do século 16, havia quase centena e meia de engenhos de açúcar em funcionamento no Brasil, concedendo a Portugal o monopólio internacional do comércio do produto. Tal crescimento requeria um acréscimo constante de mão-de-obra, somente satisfeito com a escravização das populações indígenas, em um primeiro momento, e, logo em seguida, com o afluxo de homens e mulheres africanos transportados para o Brasil. A partir daí, e até meados do século 19, seriam feitas quase 15 mil viagens oceânicas traficando gente entre território africano e terras brasileiras, fazendo desembarcar, na então colônia portuguesa, cerca de 4,8 milhões de pessoas roubadas de suas famílias e de seus lugares de origem”, lembra o curador Moacir dos Anjos.
Vale notar também que o alimento que envolve a âncora também é frágil e se dissolve facilmente, o que coloca em xeque também as próprias noções de segurança e território, além de ressaltar os processos históricos de apagamento social de pessoas negras escravizadas.
Diante do trauma da travessia, os irmãos de barco compartilham nós, revoluções e esperança de retorno. Nesta exposição, Tiago Sant’Ana insiste na existência dessa crença, a possibilidade de voltar, mesmo que fosse inviável. Diante de tanta violência, era preciso, ao menos, saber onde está a terra de onde foram arrancados, vislumbrar uma rota de fuga, para sobreviver. Pois não era mais dada, aos homens e mulheres levados à força de lá, a faculdade de enxergar, com olhos formados no exílio, aquilo que tanto ansiavam ver novamente. Mas deles não era possível tirar o Cruzeiro do Sul: o conjunto de estrelas que só pode ser visto no hemisfério sul era usado como bússola nas fugas de escravos e aparece numa sequência de embarcações em uma das fotos da mostra. Mas os africanos tinham outra orientação geográfica: “O sol nasce sempre por Guiné”, revelou um cubano numa conversa com o artista.
Em Ao sul do Equador, Sant’Ana constrói uma rosa-dos-ventos – objeto de orientação náutica – também coberta de açúcar, reforçando mais uma vez o objetivo dos deslocamentos dos navios entre a África e o Brasil: escravizar pessoas negras para a produção de um produto a ser vendido no mercado internacional. O historiador Paul Gilroy defende a ideia de um Atlântico Negro, mas podemos dizer que tratam-se de oceanos que carregam, em sua história, peles negras, grãos brancos e líquidos vermelhos. Guiadas por rosas-dos-ventos, as caravelas transportavam gente, açúcar – ambos reduzidos a mercadorias – e descartavam corpos feridos. A rosa-dos-ventos de Sant’Ana poderia, contudo, “metaforicamente se desfazer com ventos oceânicos fortes, sugerindo que outras orientações de barcos e vidas podem ser estabelecidas, e que não há naturalidade no aprisionamento de corpos”, ressalta o curador.
Em Fluxo e refluxo, vê-se um homem negro de costas carregando, sobre a cabeça, a réplica de uma caravela branca, também de açúcar, apoiada em uma base rendada – elemento muito usado pelas baianas para carregar todo tipo de mercadoria. A proa da embarcação aponta para uma direção – para a colônia escravocrata e exportadora do produto –, enquanto o rosto do homem se volta para a direção oposta – para a terra nativa de todos escravizados, para desejavam retornar. Couraçado, trabalho que faz referência à Revolta da Chibata e os processos de escravidão pós Lei Aurea, fica propositalmente na frente de Calunga do mar, a pintura de um marinheiro sem subjetividade e tomado por água.
É interessante notar, ainda, que a exposição começa com os nós náuticos que, de certa forma, nos falam de amarras e prisões, e termina com a bandeira azul marinho (cor das profundezas do mar!) onde está bordada a frase “a linha do mar está sempre na altura dos olhos”, é lá que nasce o sol, é lá que fica Guiné.
Irmãos de Barco
Data: até 23 de julho
Local: Galeria Leme
Endereço: Av. Valdemar Ferreira, 130 – Butantã, São Paulo