Se, no dia primeiro de setembro de 2018, o artista Thiago Rocha Pitta falasse que algo terrível e traumático estava prestes a acontecer e o mundo viraria de cabeça para baixo (ou acabaria), ninguém acreditaria nele. Talvez alguns até concordassem, mas nunca imaginariam que tudo seria tão rápido e violento. “Diziam que eu era o louco da montanha”, se diverte o artista que se mudou para Petrópolis um ano antes. Mas o assunto que ele busca discutir é sério. No dia seguinte, o Museu Nacional pegou fogo, apagando boa parte de nossa memória cultural – um sinal traumático do que estava por vir, algo talvez muito pior: um massacre não só da cultura, mas da moral, da dignidade, da economia e da população brasileira. É sobre tudo isso e muito além a exposição Nigredo, primeira individual de Thiago na galeria Casa Triângulo, em São Paulo.
“A dinâmica trágica, tão bem explicitada pela voz dos profetas, implica na negação da herança criminosa por sujeitos que se imaginam senhores de seus atos, embora não passem de joguetes de forças maiores que, cedo ou tarde, cobrarão pelo dolo causado”, ressalta o curador da mostra Pedro Cesarino, que estudou no Museu Nacional junto com Thiago.
“Nigredo” é uma palavra em latim que significa escuro. Foi adotada pelos alquimistas para designar o primeiro estado da alquimia: a morte espiritual, significando decomposição ou putrefação. E o começo do fim é, para o artista, o incêndio na Quinta da Boa Vista. Mas não foi o primeiro e certamente não será o último, como Thiago sugere na melhor obra da exposição: o filme Cabeça Incêndio, com imagens do artista e texto do curador, narra a história de uma personagem, “uma imagem de antepassado”, que teria previsto e vivenciado uma sequência de violências e queimadas. O primeiro foi o ataque em seu povoado, quando ela foi “separada de seu corpo” e levada como troféu para outro território. O segundo foi com a chegada dos brancos, mais numerosos e violentos, que não se contentavam enquanto tudo não estivesse envolvido pelas chamas. Ela deixou a terra dentro de uma caixa, roubada até chegar no museu. Era 8 de julho de 1978 quando aconteceu o terceiro incêndio, no Museu de Arte do Rio de Janeiro. “Era outro aviso da vertigem que nos engole”. O último colapso entre brasas viria 40 anos depois, no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a confirmação de outra de suas profecias.
“O incêndio do Museu Nacional surgia como aviso sinistro do que estaria por vir nos atuais tempos de pandemias virais e fascistas. Embora recente, o incêndio é resultante de outros tantos crimes acumulados (e jamais devidamente expiados) desde que as naus portuguesas aportaram por aqui. É esse acúmulo que parece impor a Thiago uma inflexão histórica nas obras aqui reunidas, que elaboram, contra o pano de fundo do não humano já explorado pelo artista em outros trabalhos, os impactos do cenário de terra arrasada em que vivemos”, aponta o curador.
Ao lado do fogo arde e destrói nossa memória na tela Incêndio no museu, está a pintura Grande Monumento Alquímico – um retrato da refinaria que queima há décadas e lança fumaça escurecida sobre a Baía de Guanabara, criando um incêndio perpétuo. O fogo permeia toda a exposição. Tudo destrói mas, ao mesmo tempo, renova e garante a possibilidade de um novo começo. “E se os brasileiros tivessem lançado chamas no barco de Pedro Álvares Cabral na época da invasão?”, sugere o artista na tela Suplício de Cabral. Um meteorito, com seu rastro de fogo, que antes caiu sobre essa terra agora dela se afasta – por desgosto ou por indiferença – na tela Retorno do Bendegó.
Entre incêndios reais e metafóricos, Thiago prenuncia em suas obras o avanço da catástrofe que, antes de 2020, já mostrava os seus sinais. Muitos viam, nos alertavam…mas eram tidos como loucos. Não à toa, o artista ressalta o mito de Cassandra. Por sua impressionante beleza, Cassandra conquistou Apolo que lhe concedeu um de seus mais preciosos poderes: antever tragédias e eventos e fazer profecias. Porém, tudo tem um preço, Apolo queria que Cassandra se deitasse com ele, mas ela negou e, por isso, foi punida. O deus fez com que as pessoas não dessem credibilidade às previsões de Cassandra, sendo a mesma tida como louca. Durante a invasão da Grécia, Cassandra buscou de todas as formas evitar que eles aceitassem o Cavalo de Tróia, entretanto o esforço foi em vão, não a escutaram. Ela presenciou a derrocada de Tróia no alto da torre onde estava presa por causa da suposta insanidade, foi escravizada pelos gregos, e depois foi assassinada.
Outro elemento recorrente é o crepúsculo, com todo seu mistério e melancolia, e diferentes portas e portais sugerindo diferentes entendimentos (ou escolhas) de tempo e espaço. Em Nigredo, as obras procuram aprisionar momentos marcantes e o tempo se sobrepõe, nos confrontando com fatos, fenômenos e futuros. Os eclipses trazem consigo enigmas e ambiguidades que também chamam a atenção do artista, podem ser avisos de tempos sombrios ou apenas expectativas que criamos diante de algo que não conhecemos ou controlamos. O gesto de Thiago sugere mais perguntas do que respostas: um eclipse lunar, antes do incêndio do Museu Nacional, e outro solar, que aconteceu depois da tragédia, aparecem, ao lado do mapa celeste da fatídica noite de 2 de setembro de 2018.
Em Nigredo temos o sentimento de que algo apocalíptico está prestes a acontecer. Mas já não estamos todos no mesmo barco em chamas sentindo arder as consequências de nossas escolhas do passado, presente e futuro? A personagem de Cabeça Incêndio propõe um outro olhar, ” não o dirigido para fora, para o fluxo inútil dos acontecimentos, mas o que atravessa o tempo e suas repetições, o que enxerga os crimes que se sucederam sem expiação”. Só assim, talvez, poderemos renascer das cinzas.
Nigredo
Data: De 19 de junho até 14 de agosto
Local: Casa Triângulo
Endereço: Rua Estados Unidos, 1324