Fã de Tunga, Glauber Rocha e Matthew Barney; junguiano; apaixonado por tarot, Thiago Martins de Melo cresceu entre pigmentos e textos. Seu pai é pintor, a mãe psicologia e a avó escrevia poemas. Cresceu no Maranhão, um pedaço especial do Brasil onde a cultura amazônica encontra a afro-brasilidade nas artes plásticas, na comida, na música… no ar.
Leitor de George Bataille, Eduardo Viveiro de Castro e Lao Tzu, ele decidiu ser artista logo cedo apesar de se interessar por filosofia, antropologia e sociologia. O resultado dessa turbulência de referências e interesses pode ser visto, até o dia 6 de novembro, na Galeria Millan, na sua primeira individual na galeria, Ouroboros sucuri, com curadoria de Gunnar B. Kvaran.
Entre 19 trabalhos, incluindo pinturas, esculturas e animações em stop-motion, o artista revela um pouco de seu universo e trajetória que começou com a representação de sua experiência e vivência pessoal e, nos últimos anos, se expandiu para uma tentativa de entender e representar a complexidade da sociedade brasileira.
Thiago é contador de histórias sem pudor ou covardia – como todo artista deveria ser. Extrapola as possibilidades das técnicas pictóricas ( elementos tridimensionais saltam das pinturas e animações são incorporadas às telas), enquanto cria camadas de signos, figuras e eventos. Narrativas históricas, sociais e políticas são mescladas a lendas indígenas ou afrodescendentes ou a signos que evocam poéticas que perpassam o ocultismo, o espiritismo ou convicções religiosas.
“Jung desempenhou um papel muito importante na maneira como enfrentei o signo pictorial. Compreender a importância da construção simbólica me fez refletir sobre meus próprios interesses espirituais. Eu tinha experiência familiar dentro da espiritualidade desde a infância, tanto o espiritismo Kardecista quanto a religiosidade afro-brasileira. Essa visão de mundo espiritual afro-brasileira me apresentou ao sincrético, o que sempre me intrigou. Então me interessei por tarô e outros oráculos”, revela o artista. Para o curador, essa rica e complexa experiência é o que potencializa e universaliza o trabalho: “No entanto, guiado pela noção de ‘sincretismo’, ele consegue estender o seu discurso a uma cena mais universal, onde os signos e os símbolos e diferentes elementos cosmológicos assumem um sentido mais aberto e multi semântico, ancorado em realidades diversas, de diferentes épocas da humanidade”, conclui Kvaran.
Thiago insiste em nos provar que o tempo não é linear e que são muitas as feridas de um sul global pós-colonial. Ressalta traumas coletivos, crenças pessoais, certezas ( mais que dúvidas) existenciais em pintura-alegorias viscerais, densas, quase agressivas, com camadas espessas de tinta e texturas indomadas. E, nessa sobreposição de signos e símbolos – por vezes com intenções e significados mais óbvios, outros mais enigmáticos -, ele cria fricções da nossa realidade.
São construções complexas que repelem num primeiro momento, mas o olhar mais cuidadoso é seduzido e instigado pela miscelânea de referências e ideias que dificilmente habitariam o mesmo espaço e tempo. Há, aqui, formas de resistência tanto política e social, contra mecanismos de discriminação e violência dos marginalizados, quanto estética. “Os brasileiros [ viciados na plasticidade estéril do modernismo] não gostam ou não entendem o meu trabalho”, pontuou o artista.
Etimologicamente, a palavra “Ouroboros”, presente no título da mostra e representada em diferentes momentos no trabalho de Thiago, se originou a partir da junção dos termos gregos “ourá”, que significa “cauda”, e “boros” que quer dizer “comer” ou “devorar”. A imagem de representação do Ouroboros, desta forma, é constituída por uma serpente que morde a própria cauda, fechando-se em uma forma circular.
A autofagia, aqui, remete à ideia de eterno retorno, transformação, evolução e reconstrução. Trata-se, portanto, de um símbolo místico da eternidade, tradicionalmente usado como representação da criação do Universo e de tudo aquilo que é tido como eterno e infinito. O Ouroboros foi registrado pela primeira vez no antigo Egito, mas que aparece em diversas culturas de distintos tempos e geografias. “É possível encontrar esse símbolo em algumas culturas indígenas americanas, tribos africanas. O próprio Lao Tzu, quando falava da forma circular, trazia essa imagem da cobra se comendo. Aliás, realmente existem algumas serpentes que comem o próprio rabo. A cobra é um signo universal e importante em diferentes culturas pelo fato de ser um animal que troca de pele, se renova, se transforma. Quando ela está comendo parte de si, seu passado. Se devorando e crescendo. É uma autofagia constante, ela está sempre se metamorfoseando em outra coisa. É um signo que trata de tempo, de não-linearidade, da constância e da transformação”, explica o artista.
Nos trabalhos da mostra, o signo é revisitado moldurando a tela de cerca de metros ou como protagonista de algumas cenas. “Dentro desse universo total, dessa forma criada pela serpente, você tem o caos, a matéria e a natureza. Quero falar sobre esse tempo que se repente, que se reconstrói, se come. Sobre as histórias do mundo são sempre as mesmas, sempre recontadas”, explica.
Mas Thiago atualiza e territorializa o mito ao representar a serpente, aqui, como uma sucuri – espécie encontrada na América do Sul. Na pintura que abre a exposição a sucuri circunda um mundo em colapso: uma guerra entre dois jaguares acontece entre cenas de oprimidos matando outros oprimidos. “Essa luta acontece dentro de um sistema muito maior. A cobra grande aparece como símbolo de um grande sistema – governamental, colonialismo ou imperialismo. Alguns falam sobre o capitalismo, pela fome incessante da cobra”, explica o artista. “A onça é um símbolo muito forte em toda cultura da América Latina. Ela é muito valorizada entre os maias, astecas, incas e os indígenas brasileiros amazônicos”.