“Deixa comigo, eu seguro o pagode e não deixo cair.” A frase é de Jovelina Pérola Negra, na música Luz do Repente, e está na playlist que Márcia Falcão preparou especialmente para o AQA. Mas poderia muito bem ser dela. “Quero pensar que eu também tô fazendo isso no campo da pintura”, diz a artista. Segurar a imagem. Segurar o corpo. Segurar o gesto.
Márcia nasceu em 1985, no Rio de Janeiro, e cresceu em Irajá, na zona norte da cidade. Vive e trabalha até hoje no subúrbio, e é a partir desse território — social, afetivo e político — que constrói sua pintura. Suas telas são habitadas por figuras femininas negras, marcadas pelo tempo, pela vida, pelo que é imposto. Às vezes feridas, às vezes em êxtase, às vezes prontas para o embate.
O trabalho lida de forma direta com a experiência das mulheres negras periféricas no Brasil, mas não se fecha numa única leitura. A paleta puxada para vermelhos fortes e marrons terrosos vem dos tons da pele negra, da poeira do chão batido, do calor que sobe das calçadas. A tinta é grossa, quase um relevo. O gesto é rápido, decidido. “O olhar para aquele corpo de trabalho é a dor que liga tudo. (…) Mas não é sofrimento, é mais enfurecido do que melancólico.”, diz a artista em entrevista para a Revista Philos.
No ateliê, a música não é trilha de fundo, mas sim parte da ação. A playlist que Márcia preparou reúne sambas, raps, R&Bs, pagodes, soul e funk — músicas que, embora vindas de épocas e estilos diferentes, giram em torno dos mesmos temas: raça, gênero, força, desejo, fé, ironia.
De Fundo de Quintal a Cardi B. De Clementina de Jesus a Missy Elliott. De Beyoncé a Elza Soares. O que une todas elas é o modo como falam da vida — ora com leveza, ora com fúria. Márcia diz que, ao montar a seleção, percebeu que os assuntos se repetem. E isso diz muito sobre como ela ouve. A música entra como estímulo, companhia e combustível. “As músicas participam do meu processo criativo”, ela conta. “Elas vão me levando pra esse lugar de criação.”
Em This Is America, de Childish Gambino, o corpo negro é ameaça e alvo. Em Fé, de IZA, é resistência e reza. Em Superstar, Lauryn Hill canta sobre vulnerabilidade e autoestima com a mesma franqueza com que Márcia pinta. E Jovelina? Jovelina segura tudo isso com o gogó. Márcia segura com pincel.
A artista, representada pela galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, já passou por instituições como o Instituto Inclusartiz, MAR, SESC Pompeia, Pivô, e recentemente levou seu trabalho para Los Angeles e Nova York. Mas o que sustenta sua trajetória não é o circuito. É a consistência de sua produção.
Nada em sua pintura é neutro. O corpo está ali como campo de disputa, mas também de autonomia. E se tem algo que a música ajuda a fazer nesse processo, é lembrar que, mesmo quando tudo pesa, ainda existe balanço.