Campo que defende a natureza como algo mais relacional e processual do que as ciências modernas nos levaram a acreditar, a Ecologia Queer tem permeado a produção de muitos artistas. Não à toa, o novo espaço do Solar dos Abacaxis foi inaugurado com uma mostra que fala sobre o assunto que será tema da programação anual da instituição independente.
Curada por Lorraine Mendes, Bernardo Mosqueira, Ana Clara Simões Lopes e Catarina Duncan, a coletiva Vida transbordante e os desejos do mundo reuniu obras de 11 artistas que oferecem visões provocativas sobre a relação entre os seres humanos e não humanos. Mas o que é, afinal, Ecologia Queer? Em que ponto ela se difere de outros campos que defendem a preservação da natureza?
Separamos aqui quatro conceitos presentes na mostra para você tirar suas próprias conclusões.
1. Antropocentrismo: o começo do fim
Todos os ambientalistas, seja qual for a linha de pesquisa, concordam com uma coisa: o mundo começou a colapsar quando o homem se colocou no centro de tudo para tentar compreender o mundo e construiu uma ideia da natureza como algo fora dele, algo distante e selvagem que precisava ser domado ou algo que é infinito – ou seja: pode destruir à vontade que vai se regenerar.
É nesse momento que surge o pensamento filosófico chamado de “Antropocentrismo” – termo de origem grega que em sua etimologia temos anthropos, que significa “humano”, e kentron, “centro”, logo homem no centro. O processo de transição entre o teocentrismo e o antropocentrismo teve início entre os séculos XV e XVI, com o surgimento do humanismo renascentista e de outros movimentos liderados por filósofos, estudiosos e artistas.
É uma forma de entendimento de mundo excludente por excelência, que coloca o ser humano na centralidade rejeitando qualquer outra existência. Os estudiosos da Ecologia Queer defendem não só a existência de outros seres, mas também que eles são dotados de inteligência, de agência e de desejo.
2.Modernidade e Colonialidade: classificação é exclusão
Tanto a Ecologia Queer, quanto o Racismo Científico encontram a origem dos problemas ambientais no Modernismo e nos processos de colonização. A ideia de criar ciências distintas, para entender esse mundo com o homem no centro, leva necessariamente à ideia de classificação e categorização de todas as coisas do mundo para justificar atrocidades não só contra a natureza, mas contra outros seres humanos.
A partir desse momento, a natureza precisa ser separada, categorizada e classificada para ser compreendida. E as ciências que nascem dessa linha de pensamento não assimilam o gênero fluido, e tampouco as diferenças raciais.
Para os pesquisadores do Racismo Científico, esse racionalismo moderno surge como ferramenta ou argumento para desenvolver o racismo. Paralelamente, os defensores do Racismo Ambiental lembram que tivemos colonizadores com mentalidade extrativista destruindo nossa fauna e flora de tudo que alcançavam. E, pior, estes mesmos “corpos colonizadores” violam, até hoje, “corpos vulneráveis”- sejam eles humanos ou não-humanos.
O campo da Ecologia Queer defende, ainda, que modernidade construiu um entendimento de humanidade que não cogita formas fluidas e não binárias como existência. Portanto, a proposta é parar de olhar para o mundo a partir de existências medidas, definidas ou classificadas.
3.A potência da diferença
Todos concordam que a natureza dá a maior lição: ela é, em sua essência, produtora da diferença, inclusive como uma forma de sobrevivência. Ou seja: a diferença, a transformação e a mutação na natureza andam juntas com a evolução.
Com isso em mente, os pensadores derrubam as teorias que excluem seres pela diferença – de raça, gênero ou qualquer outra forma de classificação. O centro das ações se volta, aqui, para trazerà tona justamente a potência revolucionária e evolutiva da diferença. Para entender que qualquer tipo de categorização ou definição será sempre insuficiente.
4.Protagonismo e inteligência de outros seres
A maioria dos povos originários compreendem o mundo como uma coisa só: não existe separação entre homem e meio ambiente. Portanto, nem existe o conceito de que “nós precisamos proteger a natureza”, pois nós somos a natureza. E, inclusive, os seres e elementos da natureza são vistos como membros das famílias. Ou seja: é uma visão de mundo completamente diferente daquela desenvolvida pelos homens renascentistas.
Com a ideia de que todo tipo de existência tem inteligência e agência, a Ecologia Queer propõe uma nova forma de aproximação e relação com todos os seres dos nossos entornos. A ideia é dedescentralizar o lugar do ser humano. Tirá-lo do protagonismo das narrativas gerais, incluindo da própria criação. Defender não só a existência de outros seres, mas também que eles são dotados de inteligência, de agência e de desejo.
E como tudo isso se reflete nos trabalhos de “Vida transbordante e os desejos do mundo“?
Alguns artistas propõem, então, a ideia de co-criação com outros seres e existências – como é o caso de Luana Vitra que procura ouvir um minério ao partir da ideia de que aquele elemento tem uma inteligência, tem algo a comunicar.
É o caso, também, da escultura criada por Dyó Potiguara a partir da composição de um conjunto de babosas. A obra só fica completa quando as plantas forem cortadas para que o caimento de sua seiva sobre papel crie um desenho próprio.
Outro exemplo é o trabalho de Tuca Mello que evoca a água e os seres invisíveis que nela habitam: o artista elabora pequenos lagos no espaço expositivo onde cultiva membranas bacterianas. Essa membranas serão manipuladas e a vida nos lagos se reiniciará. A ideia é propor uma prática colaborativa composta pelo artista e múltiplas presenças não-humanas.
“É também sobre questionar o que a modernidade definiu como elaboração de processo artístico, como experiência de fruição de uma obra”, explica Lorraine Mendes. “O trabalho do Rubens Takamine acontece primeiro pelos aromas e, depois, pela visualidade. Questiona, assim, a dinâmica muito excessiva da visualidade desse mundo moderno”, continua.
A exposição também traz muito a ideias de encantamento daquilo que é inefável, indizível, imperceptível. Afinal, a ciência moderna pode classificar e listar as características de uma espada-de-são-jorge, por exemplo, mas não consegue entender o que essa planta pode fazer para aqueles que acreditam no seu poder de proteção, ligado à Ogum. Os povos originários concordariam, afinal na vida deles todas essas forças estão mais que presentes. São conhecidas e respeitadas.
Vale refletir, entretanto, sobre a contradição do próprio termo “Ecologia queer”. Se a ideia geral deste campo de estudos é negar os processos e classificações das ciências modernas, adotar o termo “ecologia” – área da biologia responsável para estudar as relações que seres vivos estabelecem entre si e com o meio em que vivem – é pensar a partir do próprio conceito de classificação moderna do mundo.