A potência da arte para unir gerações é o fio condutor do romance O Pintassilgo, de Donna Tartt, adaptado para o cinema em 2019 por John Crowley. O vencedor do Prêmio Pulitzer de 2014 acompanha a vida do menino Theodore Decker, virada do avesso quando, aos 13 anos, presencia um atentado ao Metropolitan Museum of Art de Nova York em que sua mãe, Ashley, é vítima fatal.
Disponível no serviço de streaming do Telecine, o filme tem a dura tarefa de adaptar o denso livro de 700 páginas, repleto de reviravoltas inusitadas e intensa narrativa em primeira pessoa de Decker. Atravessado pelo luto, a perda completa de suas referências e o desespero de ter cometido um crime que julga imperdoável na confusão do momento – o furto da pintura que dá nome às obras – o formato dá um tom profundo e sensível ao romance, que encanta o leitor apesar de sua longa extensão.
A obra roubada tem em si uma história própria de tragédia e mistério. Ela é de autoria de Carel Fabritius, pintor holandês do século XVII, morto em um incêndio causado pela explosão de uma fábrica de pólvora em 1654. No episódio que encerrou sua curta vida, a obra do pintor quase foi destruída, e o que sobrou acendeu a hipótese do enorme potencial criativo e técnico de Fabritius no uso da luz e perspectiva em sua obra, escapando da forte influência de seu mestre Rembrandt.
As peças perdidas na história do pintor e os aspectos não contados de sua genialidade se refletem nas lacunas na vida do perturbado Theo, e das inevitáveis perguntas que rondam a mente de quem sofre um trauma de tal natureza. O que a vida teria sido sem a tragédia que se desdobrou?
O filme, de sua parte, deixa outras lacunas – se apegando somente aos acontecimentos principais da história, Crowley deixa de lado a trama interna de Theo, abrindo mão do encantamento e sensibilidade da obra de Donna Tartt. Sem o viés das reviravoltas psicológicas, a adaptação perde a linha que torna coesa e significativa sua vida e sua relação com a pintura, alvo de repetidos roubos ao longo da trama e cuja posse Decker tenta freneticamente recuperar.
Contada em sua própria voz, a história no livro tem os tons da paranoia e depressão de Theo, e a maneira como seu sofrimento e pânico tingem sua visão do mundo. O vício em opioides adquirido em sua temporada com o pai, um viciado em apostas, e a madrasta cocainômana em Las Vegas, e a obsessão de Theo por sua amiga Pippa – também sobrevivente do atentado – colaboram para mostrar como o garoto progressivamente se distancia da realidade, espiralando em seu próprio caos mental e sua profunda carência.
Carregada por Theo como o talismã do qual sua existência depende, a pintura do pequeno pássaro preso por uma fina corrente é um símbolo de sua vida antes de ser completamente transformada. A conexão reflete o próprio poder da arte de criar e recriar laços com as pessoas através dos séculos, carregando um tanto de suas origens e provocando novas conexões com o inefável ao longo de gerações.
O quadro d’O Pintassilgo não é, afinal, um objeto qualquer que Decker persegue freneticamente, mas sim aquilo que o conecta com sua própria corporeidade e existência enquanto ser humano. Trata-se de uma reflexão sobre a potência que a arte tem de dar sentido sublime à própria vida, por mais nonsense e cruel que essa possa por vezes se mostrar – e a de Theo Decker certamente está cheia de passagens surreais e icônicas.
Na adaptação, outros cortes importantes são feitos no que diz respeito aos personagens. Figuras intrigantes e essenciais, como o culto e caótico ucraniano Boris Pavlikovsky, amigo inseparável de Theo em sua temporada na desértica Vegas, são reduzidos a elementos quase cenográficos para justificar as ações e os rumos que sua vida toma. Nessa dinâmica de achatamento, o próprio personagem principal acaba reduzido a uma faceta pouco cativante, assumindo diante das inconstâncias de sua trajetória uma atitude passiva, que nada tem a ver com sua intensa e paranoica vida mental.
Ao fim de tanta poda, o que sobra é um blockbuster de elenco chamativo e boas atuações – com a presença de Ansel Elgort, conhecido por A culpa é das estrelas, e Finn Wolfhard, estrela de Stranger Things, além de Sarah Paulson, Owen Wilson e Nicole Kidman –, mas reduzido a uma fração de sua potência original. Embora beba da riqueza do mistério de Donna Tartt, o filme deixa a desejar na estrutura da trama e no encantamento que poderia provocar no espectador. No entanto, pode ser entretenimento decente para uma tarde tediosa. Pra quem tiver mais paciência, o calhamaço de 2014 sugere um compromisso difícil, mas que seduz e encanta os que chegam ao seu fim.