Apesar do dia chuvoso e caótico em São Paulo, a visita à nova – e permanente – sede do Paço das Artes foi só alegria. Primeiro, dá pra se emocionar com essa significativa conquista de uma instituição que, por quase 50 anos, não tinha um local para chamar de seu. Por muito tempo, o Paço ocupou lugares improvisados ou emprestados: o último, na Cidade Universitária, serviu às diversas exposições, projetos educativos, seminários e Temporadas de Projetos por mais de 20 anos, até ter de ser devolvido ao Instituto Butantã.
De 2016 para cá, Priscila Arantes (diretora e curadora da entidade) veio batalhando intensa e firmemente para manter uma programação adaptada a um pequeno espaço que foi cedido pelo MIS (além de estabelecer parcerias com outras instituições), ao mesmo tempo que buscava soluções definitivas para sua sede. O caminho encontrado foi a cessão de 20% da área do casarão Nhonhô Magalhães, localizado na esquina da Avenida Higienópolis com a Rua Albuquerque Lins, ao lado de um shopping. Os administradores do centro comercial usarão o palacete para realizar eventos, e a garagem da mansão foi reformada para converter-se em uma grande sala expositiva. Até poderia parecer estranha a vizinhança entre museu e shopping, mas a verdade é que essa proximidade poderá trazer outros públicos para a instituição. A tão esperada mudança concretiza-se em um momento de desvalorização e de cortes generalizados na área cultura, o que faz com que a sobrevivência e prosperidade da organização sejam ainda mais dignas de celebração.
Por ocasião da inauguração, marcada para amanhã, no aniversário da cidade de São Paulo, a artista Regina Silveira foi convidada para criar um trabalho inédito, especificamente para o contexto do novo espaço. A obra “Cascata” surgiu de um elemento arquitetônico marcante na sala – as janelas arredondadas tiveram os vidros cobertos por adesivos brancos e foram fotografadas por Silveira, depois vetorizadas em alta-resolução e, por fim, impressas em adesivo em tamanho real. As imagens se multiplicam, se sobrepõem, se acumulam e se espalham a partir das ventanas e se derramam pelo chão e pelas paredes, como um copo que transborda. “É uma ideia de desconstrução, de pequena catástrofe. Eu já tinha realizado uma operação similar no Palácio de Cristal, em Madri, em que eu coloco essa coisa paradoxal do real e da sua representação, embaralhando a percepção e desmantelando o lugar”, conta Silveira.
Além deste trabalho, a artista e a curadora decidiram mostrar alguns vídeos históricos que foram doadas por Silveira para o museu – o acervo do Paço será todo dedicado a obras digitais ou reprodutíveis. São eles: “Campo” (1977), “A arte de desenhar” (1980) e “Morfa” (1981), exibidos em nostálgicas TVs de tubo. A mostra também apresenta a videoinstalação “Lunar” – duas projeções mostram a mesma imagem em tempos adiados, imensas esferas azul-acinzentadas se aproximando e se afastando do espectador, sob uma soturna e grave trilha sonora. A obra é quase hipnótica, meditativa; é como se observássemos a órbita e a rotação de um planeta ou de um asteróide, desde um vácuo remoto do espaço e escutando apenas os sons primordiais do tempo. “Essa obra foi concebida antes do filme do Lars Von Trier”, brinca a artista. “A interpretação [da obra] fica sempre em aberto mas, para mim, é uma pergunta sobre a vida, o tempo, onde estamos e quem somos”, completa.
A exposição acaba com a obra “Limiar”, que inspira o título da mostra, na qual uma fresta permite que o público entreveja projeções do vocábulo Luz repetidas em 76 idiomas e alfabetos diferentes. As palavras entram e saem de foco no ritmo de uma trilha sonora insólita, estranha – barulhos de inspiração e expiração marcam uma pulsação, enquanto as letras se borram em luz e voltam a soletrar o termo. Palavra e meio se confundem, espiadas por uma fenda duchampiana, como diz Regina Silveira, referindo-se à obra do artista francês “Étant Donnés“. Afinal, essa inauguração é a luz no fim do túnel de um percurso cheio de obstáculos e reveses que agora respira aliviado um novo recomeço.