Nesta sexta-feira (23), o MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) inaugura a exposição “Gran Fury: arte não é o bastante”, que estará em exibição de 23 de fevereiro a 9 de junho de 2024, na galeria do 1º subsolo do museu. Sob a curadoria de André Mesquita, curador do MASP, e com a assistência de David Ribeiro, supervisor do museu, a mostra destaca 77 obras, entre elas fotocópias e impressões digitais sobre papel, do coletivo de artistas Gran Fury, fundado em Nova York entre 1988 e 1995. Reconhecido como um ponto de referência para o ativismo artístico nas décadas de 1980 e 1990, Gran Fury foi formado a partir da organização ACT UP (AIDS Coalition to Unleash Power [Coalizão da Aids para libertar o poder]), dedicada a combater a discriminização e expor criticamente o silêncio e a negligência do governo dos Estados Unidos em relação ao HIV/Aids. O descaso era tão significativo que o presidente Ronald Reagan mencionou publicamente a Aids apenas no final de seu segundo mandato, em 1987, seis anos após o início da pandemia.
A exposição examina os limites e alcances das campanhas gráficas do coletivo, destacando a arte como uma estratégia no ativismo liderado principalmente por pessoas queer para aumentar a conscientização sobre o HIV/Aids. Visa também documentar historicamente o impacto do Gran Fury, cujo trabalho essencial moldou as estratégias subsequentes de ativismo artístico. Além disso, a mostra inaugura o programa “Histórias da Diversidade LGBTQIA+” do MASP, o qual explora, durante todo o ano, as narrativas e lutas das pessoas LGBTQIA+ por meio de exposições, oficinas e debates.
O título da exposição refere-se à frase célebre do coletivo “With 42,000 Dead, Art Is Not Enough” [Com 42 mil mortos, arte não é o bastante], estampada na capa do calendário do The Kitchen, uma instituição independente de arte experimental e performance de Nova York. Suas criações eram exibidas em espaços públicos, ônibus e até mesmo comerciais de televisão. Essa abordagem disruptiva e acessível permitiu que suas mensagens alcançassem um público amplo, desafiando diretamente a narrativa dominante e provocando reflexões sobre questões como saúde pública, direitos LGBTQIA+ e racismo. Ainda sobre o título “Arte não é o bastante”, André Mesquita pontua: “Eles não estão dizendo que a gente tem que abandonar a arte a favor da política ou a favor do ativismo, eles estão se perguntando o que a arte tem a ver com isso, e como os artistas, os curadores, ou mesmo as instituições, os críticos de arte, as pessoas que estão nesse sistema se engajam em uma ação direta para combater uma crise.”
O Gran Fury empregava uma combinação eficaz de design gráfico, táticas de disseminação guerrilheira e apoio institucional das artes para comunicar a urgência de suas pautas. Um dos aspectos mais marcantes de seu trabalho foi sua capacidade de se apropriarem da linguagem da mídia corporativa e do discurso dominante para produzir campanhas impactantes. Ao utilizar técnicas publicitárias, eles conseguiram chamar a atenção para a crise da Aids de uma maneira que ressoou com o público e forçou uma discussão que estava sendo negligenciada pelas autoridades, questionando como utilizar essa narrativa a favor de uma luta política.
Em boa parte de sua trajetória, o grupo contou, em sua formação, com Avram Finkelstein, Donald Moffett, John Lindell, Loring McAlpin, Mark Simpson (1950-1996), Marlene McCarty, Michael Nesline, Richard Elovich, Robert Vazquez-Pacheco e Tom Kalin.
Em um de seus trabalhos mais conhecidos, o outdoor “Kissing Doesn’t Kill” [Beijar Não Mata], o coletivo apresenta três casais interraciais e LGBTQIA+ se beijando em uma época em que a representação dessas pessoas era escassa na mídia mainstream e o próprio beijo era discriminado pela crença preconceituosa, que erroneamente o considerava como um ato de transmissão. Além de seu engajamento com a questão da Aids, o Gran Fury também buscou dar visibilidade à diversidade racial e sexual, desafiando tabus e estereótipos da época.
Outra intervenção significativa foi a criação do jornal fictício “The New York Crimes”, uma sátira com The New York Times que corrigia informações imprecisas e combatia a narrativa prejudicial em torno do HIV/Aids, por exemplo a de que o controle do HIV já estava estabilizado. Nessa ocasião, membros do Gran Fury e ativistas do ACT UP abriram as caixas do The New York Times, retiraram os exemplares e substituíram as primeiras páginas com o jornal falso durante a madrugada.
Já o díptico “The Pope and the penis” [O Papa e o Pênis] e “Sexism Rears Its Unprotected Head” [O Sexismo Ergue Sua Cabeça Desprotegida] foi um dos trabalhos mais controversos da história da Bienal de Veneza, marcando um momento de intensa discussão e reflexão sobre os limites entre arte e ativismo. Em 1990, o grupo foi convidado a participar do evento e apresentou essa obra, composta por dois outdoors dispostos lado a lado. Em um dos outdoors, uma imagem do Papa João Paulo II estava acompanhada por um texto que abordava a retórica anti-preservativo da igreja. Já no outro, uma representação de um pênis ereto gigante ocupava o centro da imagem, acompanhado por uma frase enfática: “O sexismo mostra sua cabeça desprotegida. Homens, usem camisinha ou caiam fora. Aids mata mulheres.” O diretor artístico da Bienal na época argumentou que a obra não se tratava apenas de arte, mas sim de ativismo, destacando a importância do tema da Aids mesmo em um contexto em que muitos na Itália preferiam ignorar sua existência. Essa decisão de manter a obra em exibição foi significativa, pois reconheceu a importância de confrontar questões sociais urgentes, mesmo que isso desafiasse convenções estabelecidas.
Além dos trabalhos já citados, a mostra conta ainda com outras intervenções importantes como “Read My Lips”, “The Government Has Blood on Its Hands”, “Silence = Death”, “Control”, entre outros.
Embora seja considerada uma exposição histórica, visto que nenhum trabalho ali foi atualizado, a exposição também nos convida a refletir sobre a situação atual da Aids. Apesar dos progressos médicos e científicos, a Aids ainda é uma questão premente em muitas partes do mundo. É fundamental reconhecer que, mesmo com os tratamentos disponíveis, a falta de acesso a eles e o estigma social ainda representam desafios significativos na luta contra essa doença.
Além disso, ao analisarmos nosso contexto atual, a luta do Gran Fury pode se inserir em diversas narrativas contemporâneas que abordam discursos dominantes, negligência governamental e subnotificação pela mídia. Portanto, nos dias de hoje, quais manchetes você acredita que o Gran Fury atualizaria para refletir questões pertinentes e emergentes?