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Jonas Arrabal relata exclusivamente ao AQA como foi trabalhar com Carlito Carvalhosa

por Beta Germano
Carlito Carvalhosa em seu ateliê
Carlito Carvalhosa em seu ateliê

O avesso da obra

por Jonas Arrabal

Estava assim quando cheguei foi o meu primeiro contato com o trabalho do artista Carlito Carvalhosa, em 2006, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Uma das primeiras exposições de arte contemporânea que vi na cidade, quando eu recém havia me mudado para a capital. Era enigmático me colocar em confronto com aquela massa em gesso que insistia em ficar suspensa no ar, presa por cabos de aço. A solidão daquela peça no espaço, um convite para a permanência. Diante de toda aquela materialidade, há uma operação que transita entre o possível e o impossível, o dito e o que não é tão explícito, o peso e a leveza daquele corpo que parece flutuar delicadamente, pousado num frame exato, sem oscilar. Era possível circundar, e observar cada parte de diferentes ângulos, aquela pedra que insistia em driblar o tempo. Uma forma reconhecida, ali invertida, deslocada, ressignificada.

Carlito parecia tocar o tempo e fazer o que quisesse com aqueles quilos e quilos de gesso. Deslocou o pão de açúcar para dentro do espaço expositivo. A pedra está lá fora, era possível ver pela vidraça do museu, mas está, também, ali dentro. Eu quase podia tocar o topo e, dependendo do ângulo, o recorte daquela massa me lembra também um coração, ou um dedo apontado para o chão.

Anos depois, entre 2017 e 2019, surgiu a oportunidade de trabalhar com Carlito. Uma amiga me indicou para o trabalho, passou o contato, escrevi, marcamos uma conversa. Entrar no espaço de trabalho de um artista é se aproximar da sua obra por outro ângulo. E eram muitos os ângulos para serem gravados na memória. O pé direito do ateliê era algo que impressionava de imediato. Nas paredes, estavam expostas obras mais antigas; outras, apoiadas na parede, aguardavam secar; nas mesas, ferramentas de uso pessoal e outros trabalhos recém iniciados pelo artista; no chão, tinta fresca, tinta seca, respingos de cera e de cola. Entrar naquele ateliê como quem se aproxima intimamente do artista, como quem se aproxima da magia de como as coisas são feitas. E sobre as nossas cabeças, uma grande peça estava suspensa por cabos de aço. 

Estava assim quando cheguei, instalação de Carlito Carvalhosa, no MAM RJ
Estava assim quando cheguei, instalação de Carlito Carvalhosa, no MAM RJ
Exposição Faço tudo para não fazer nada, na galeria Nara Roesler
Trabalhos de cera, na exposição Faço tudo para não fazer nada, na galeria Nara Roesler
Trabalhos de cera de Carlito Carvalhosa
Trabalhos de cera de Carlito Carvalhosa
Visão lateral da escultura de parede de cera de Carlito Carvalhosa
Visão lateral da escultura de parede de cera de Carlito Carvalhosa

Logo percebi que se tratava de um molde, em fibra, daquela peça de 2006 do MAM. E o molde era tão impactante quanto a obra. Era como se pudesse ser cúmplice de todo o movimento da peça, de onde aquela massa de gesso fora gestada. A sensação era de estar habitando a coxia, a sala de ensaio, o ponto de vista do palco, observando a plateia, entendendo a engrenagem da mágica do espetáculo. E sobre nós, a memória do peso da obra, ou início de tudo.  Daquele molde que nasceu a obra, que foi tão importante para me entender como artista. Carlito desde então se tornou uma referência, um nome anotado num caderninho preto que eu carregava como um depositório de ideias, um nome ao qual recorrer e pesquisar mais. Me interessava a forma como ele lidava com as diferentes matérias, a transição e experimentos contínuos, a intimidade com as diferentes mídias.

Entrar naquele espaço/palimpsesto para habitar aquele espaço/casa e trabalhar naquele espaço/oficina. Enfim, adentrar o espaço do outro, aquele espaço cheio de história. Escavar aquele lugar, juntando as peças, um quebra-cabeça poético. Em Estava assim quando cheguei havia algo, naquele primeiro contato, que impressionava pela sua presença no espaço. O pão de açúcar, em determinados ângulos, é como um dedo que parece querer tocar outro lugar, tocar esse aqui e agora. 

Via alguma semelhança com os dedos das ceras que querem sair da escultura/pintura, ou com as marteladas no alumínio, como toques sutis nesse suporte rígido, imprimindo um gesto, de dentro para fora. Depois de um tempo permanecendo naquele lugar, convivendo com aquelas peças, enxergava ao meu modo, operações que se repetiam em alguns trabalhos. 

Nos dois anos frequentando o seu ateliê em São Cristóvão, observar Carlito trabalhando era um aprendizado constante. Com ele aprendi que era preciso aprender de tudo um pouco, só assim entenderia os processos e conseguiria os melhores resultados. E ele sabia exatamente como cada material se comportaria e o que era preciso fazer para adequar as medidas com fatores externos, como um dia de mais calor, por exemplo. A sensação era de estar num ateliê/laboratório, experimentando outras medidas do material em função do clima e do tempo, investigando a quantidade de pigmento e observando a empolgação do artista ao descobrir algo novo, como uma outra forma científica. Mesmo pisando em terreno reconhecível, era sempre inquieto. Há beleza nessa operação, testemunha desse prazer pela descoberta. Como todo grande artista, Carlito decodificava cada material, entendia profundamente a sua natureza e se tornava cúmplice dele. O trabalho depende dessa relação estreita, desse domínio, mesmo que o material se apresente indomável. 

Esculturas de parede de Carlito Carvalhosa
Esculturas de parede de Carlito Carvalhosa
Esculturas de parede de Carlito Carvalhosa
Esculturas de parede de Carlito Carvalhosa

O seu modus operandi era o da organização, tudo previamente muito estudado, catalogado. Uma eloquência de quem dominava a técnica, mas a adequava à sua ideia. Estar ali era um trabalho, mas para além disso, a maior vantagem era observar como um grande artista se comportava, operava na sua intimidade. E Carlito era genial. Frequentar aquele espaço era como poder me aproximar da ideia, observar a obra e o seu avesso. Com quantas marteladas o artista dava volume às peças em alumínio espelhado? E qual a medida de força necessária? Qual a medida exata de pigmento diluído na cera que vai dar a cor base de cada peça? Não mais, não menos. Era o exato. Como fazer para a peça chegar até o topo? Como metros de tecido insistem em permanecer suspensos, leves, sem desabar sobre nossas cabeças? Carlito tinha resposta para tudo. E se não tivesse de imediato, até o fim do dia uma solução seria encontrada. 

Faço tudo para não fazer nada, última individual de Carlito Carvalhosa na galeria Nara Roesler
Faço tudo para não fazer nada, última individual de Carlito Carvalhosa na galeria Nara Roesler

Escrever esse texto hoje é como reconstruir esse espaço, relembrando imagens que compunham aquele cenário, é como construir uma escultura na memória. Parte dessa lembrança é visual, no que tange a própria dimensão do espaço ou a memória da luz de fim de tarde que vem da Baía de Guanabara, por exemplo. Parte dessa memória é sensorial, como o cheiro de tinta à óleo, terebentina, cera, parafina, o cheiro do chá de capim-limão colhido da horta… Uma sorte de lembranças e sensações que associo àquele lugar e ao artista. E assim é a vida, uma sucessão de gatilhos que nos levam a outros mundos.  

Carlito é a prova de que a grandiosidade de um trabalho não é medida pelo tamanho do discurso. Pontual e certeiro, Carlito era extremamente inteligente e generoso. Na medida do que permanece visível, Carlito se posiciona em frente à pintura e ela mesma também reflete o artista. Quem observa quem? Carlito desenha as áreas cobertas com tinta, elegendo quais outras permanecerão descobertas. Formas orgânicas surgem desse material industrial. “O assunto aqui é a pintura”. Mas também diz respeito à nossa presença no mundo, nessa dualidade entre presença e ausência, dentro e fora, e que seja refletida nas suas experiências pictóricas, ou imersas nos seus trabalhos, dialogando espaço, tempo e corpo, fazendo nossos sentidos mais apurados.

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