Home EditorialArtigos Intersecções entre o mercado e a crítica de arte

Intersecções entre o mercado e a crítica de arte

Na cultura moderna – ou seja, a partir do século XIX, marcadamente influenciada pela Revolução Industrial e pelas mudanças políticas daquele século e do anterior – a arte tornou-se o…

por Julia

Na cultura moderna – ou seja, a partir do século XIX, marcadamente influenciada pela Revolução Industrial e pelas mudanças políticas daquele século e do anterior – a arte tornou-se o objeto de estudo da crítica de arte, disciplina que surgiu seguindo metodologias próprias, finalidades específicas. Mas também viu-se concretamente transformada em mercadoria, mais do que em qualquer outro momento da história ocidental até aquele momento. A crítica, de um lado, estabelecia (ou revelava, dependendo do nosso ponto de vista) o valor estético e histórico de uma obra; o mercado, de outro, o seu valor mercantil, financeiro.

Sabemos que a arte sempre foi objeto de juízos de valor, mas houve um ponto de inflexão naquelas décadas a partir do século XVIII, quando a literatura sobre arte tomou a forma de ‘disciplina crítica’, em níveis: filosófico, historiográfico, informativo, jornalístico, etc, ao mesmo tempo que o mercado de arte começava a se delinear como o entendemos hoje (ainda que de forma bastante primitiva). A crítica de arte definiu-se como campo altamente especializado, com uma linguagem especial, terminologias apropriadas, e uma seleção singular do léxico técnico, ganhando muita importância à medida que a arte tornava-se cada vez mais complexa, cada vez mais variada e cada vez mais singular. 

Simultaneamente, esse movimento foi acompanhado por desenvolvimentos comerciais – primeiro, o surgimento das primeiras galerias de arte dedicadas à venda exclusiva de obras produzidas por artistas mortos e vivos, no início dos anos 1800 (em detrimento dos estabelecimentos anteriores que vendiam também artefatos antigos, móveis, jóias, objetos de design, etc); depois, galerias que não apenas dedicavam-se à comercialização da arte, mas também representavam seus artistas, vivos e em atividade, com contratos de exclusividade, estipêndios mensais e até exposições individuais; por fim, chegando no modelo moderno que inspira negócios até hoje, com o surgimento de diferentes níveis de comercialização: iniciantes e jovens artistas, meio de carreira, artistas estabelecidos, mercado secundário, etc. A explosão no número de galerias no início do século XX foi apenas uma consolidação desse processo, estabelecendo o modelo de venda de obras de arte para o futuro.

Mas a crítica de arte nunca deixou de influenciar essas transformações. Um exemplo clássico foi o advento do expressionismo abstrato e o papel exercido pelo crítico Clement Greenberg na sua afirmação como movimento estético legítimo – ou mais, como única resposta estética possível aos impasses da história e da produção da arte. A demanda pela crítica de arte que legitima a obra e, portanto, seu valor de mercado – ou sua força na imposição de certos valores estéticos – advém de certos ‘shortcomings’, falhas, na apreensão da produção visual de um tempo. A crítica servia, assim, como mediadora, como ponte entre a perplexidade do público e os artistas, imprescindível no esclarecimento do que informava uma boa obra de arte. Se, por um lado, a crítica estabelecia essa ‘ponte’ ou mediação, por outro sua linguagem real era muitas vezes muito mais rebuscada e inacessível que as próprias obras a que supostamente deveria a mediar. Mas esse é um capítulo à parte. 

A tarefa da crítica consistia, pois, em demonstrar que o que é feito como arte é verdadeiramente arte e que, sendo arte, se associa organicamente a outras atividades não artísticas/estéticas, envolvendo-se na cultura. No entanto, a própria crítica era instrumentalizada para tornar-se ferramenta de valorização comercial, criando uma relação de causa e efeito entre produção artística, crítica e preço de mercado. Por muito tempo, esse modelo definiu o que se vendia nas galerias comerciais, sustentadas por um lado pela ânsia de pertencimento ao mercado por parte dos artistas, e por outro pela dificuldade do campo da crítica de manter-se independente. 

Sabe-se que esse sistema não se sustentou muito até os nossos dias de hoje. Existe hoje uma incapacidade da crítica de continuar a afirmar-se como juízo, inclusive pela proliferação de diferentes estilos e modos de comercializar arte, incontáveis meios de circular a crítica e as discrepâncias e desencontros entre os dois campos. Com as mudanças do que se considera arte – e com a eliminação do objeto – a crítica tornou-se um esforço mais acadêmico, com menos efeitos práticos. O mercado, de diferentes maneiras, aprendeu a criar outros dispositivos paralelos de valoração e valorização da obra de arte, como presença em exposições institucionais e inserção em acervos e coleções, para citar alguns.

© 2024 Artequeacontece Vendas, Divulgação e Eventos Artísticos Ltda.
CNPJ 29.793.747/0001-26 | I.E. 119.097.190.118 | C.C.M. 5.907.185-0

Desenvolvido por heyo.com.br

Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support