As pessoas com menos de 30 anos não confiam nas imagens. As fotos nem sempre foram completamente fiéis, mas crescemos acreditando nelas. Com a internet, passamos a questionar tudo: ‘O que essa pessoa quer dizer com isso? Qual é o seu interesse?’ Acho isso muito triste, pois significa que não há mais sinceridade, hoje tudo tem um obstáculo ou ironia”, disse, em nossa conversa via Zoom, o fotógrafo norte-americano Nicholas Nixon, que apresenta uma retrospectiva no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
As 182 imagens da mostra, curada por Carlos Gollonet e dividida em núcleos, são exatamente sobre o que se perdeu com a era dos filtros e insuspeitas manipulações digitais. Revelam muito do que geralmente não se vê – a individualidade e as emoções de cada personagem e a singularidade do momento são capturadas por meio de pactos íntimos, com a aproximação da câmera por vezes a centímetros do retratado, que sugerem algo de tátil. “É sua forma de fazer uma carícia”, expõe Gollonet.
Nixon não prepara as cenas, mas participa delas, e quando estabelece um clima de confiança, clica – sempre permeando temas como a passagem do tempo, vulnerabilidade humana, as sutilezas da intimidade e a sedução plástica da pele. Esse cuidado fica claro na celebre série As irmãs Brown, na qual Nixon faz um retrato anual de sua mulher, Bebe Brown, e as três irmãs, sempre na mesma ordem – Heather, Mimi, Bebe e Laurie –, desde 1975, explorando o poder da documentação em série de revelar similaridades, diferenças e transformações. Muitos fotógrafos se interessam pelas marcas da passagem do tempo e se propõem a retratar uma mesma pessoa por vários dias, meses ou anos – caso de Paz Errázuriz, Rineke Dijkstra ou Zed Nelson. No entanto, além de ser um dos primeiros a fazer esse tipo de estudo e seguir investindo nele pelo período mais longo, Nixon o faz de forma muito singular.
Se ele seguisse a lógica de fotos seriais dos alemães como Bernd e Hilla Becher, por exemplo, todos os retratos seriam idênticos – com o mesmo fundo, roupa, luz e poses – para que a única variante fosse o envelhecimento. Há, em As irmãs Brown, uma disposição serial, mas é possível perceber também algo de único em cada imagem que sugere traços da personalidade das irmãs e indícios sobre o estado de espírito naquele dia: elas estão abraçadas de formas diferentes; mais ou menos unidas; uma fica mais bonita; outra envelhece mais rápido; alguns looks e cortes de cabelo revelam a moda da época; e os olhares ousados aparecem, em alguns anos, distantes ou mais dóceis. Portanto, apesar das imagens serem absolutamente cuidadosas, elas apresentam muitas variáveis que são mais da lógica do instantâneo, do subjetivo, do cotidiano. Há narrativas e o nosso impulso é buscar pistas sobre aquelas meninas que transformam-se em mulheres diante dos nossos olhos.
Podemos perceber o “nascimento” de cada ruga, mas quanto mais estudamos as imagens, mais percebemos que o envelhecimento não as define. Jovens desafiadoras com olhares penetrantes vão se transformando em mulheres fortes e ternas. A necessidade de cada uma de provar sua personalidade se dissolve com o passar dos anos e, quanto mais maduras, o que prevalece é a união e o carinho entre elas: uma mão agarra a cintura de uma irmã; os braços abraçam ou são lançados em solidariedade casual sobre um ombro; a palma da mão firma o pescoço de outra, reconfortante. Nas últimas imagens, elas parecem olhar para a câmera com um brilho de confiança e afeto. Por isso, presume-se que a mudança pode ser resultado da própria relação delas com o fotógrafo. “Nenhuma foto é 100% verdadeira, mas tento ser o mais fiel possível. Se fosse construir a cena, seria sobre mim. Mas é muito sobre nós, sou como o irmão delas”, revela Nixon que é filho único e sempre se encantou pela relação entre as irmãs.
O processo é, portanto, bastante colaborativo: elas escolhem junto com Nixon qual imagem irá representar cada ano, e qualquer participação em exposições, livros ou matérias de revista precisa ser aprovada por todas. Comprometido com a realidade, o artista fez a versão de 2020 via Zoom – eles estavam isolados e em estados diferentes dos EUA. “Pensei em montar uma cena usando o retrato de quem não podia estar presente, mas não queria construir uma ficção. A foto no Zoom seria mais sincera”, explica.
A vulnerabilidade tão presente na série das irmãs é captada em outras séries, que incluem retratos de idosos num hospital onde Nixon trabalhava como voluntário e o registro de 15 doentes terminais com HIV, em intervalos de uma semana a um mês, até a morte de cada um, num processo que durou quatro anos. “Na época, era fácil dizer: ‘Não tenho nada a ver com isso; não sou gay; não uso drogas’. Esse tipo de atitude era muito cruel. Eu queria revelar as individualidades dessas pessoas para mostrar que suas vidas importavam”, explica o artista, que acabou se aproximando muito de algumas delas. “Eram como meus filhos, foi muito duro porque eu sabia que iria perdê-los”, lembra o artista. Nos anos seguintes ele criou imagens de casais e corpos nus. O nu, vale lembrar, fascina e, ao mesmo tempo, revela-se um tabu nunca superados na História da Humanidade.
Em Abril de 2018, Nixon cancelou sua exposição no IAC, em Boston, por ter sido acusado de assédio sexual por ex-alunos do Massachusetts College of Art and Design. Em nota oficial, o artista afirmou que “sentia que suas obras não podiam mais ser vistas por seus próprios méritos”. No entanto, nada foi comprovado na época e a mostra que incluía as As irmãs Brown seguiu para instituições na Europa. “Eu pedi desculpas e a escola fechou o caso. Acho que eu passei um pouco do limite ao propor aos alunos que eles se fotografassem nus. Acho que o problema foi que eu os tratei como jovens fotógrafos e não estudantes. Eu queria prepará-los profissionalmente e não me dei conta de que eles eram muito novos. Mas tudo o que eu fiz foi para instigá-los a serem mais corajosos e desafiar a si mesmos para fazer fotos melhores. Eu nunca tive nada pessoal com os estudantes, só estava tentando ser um professor bold, pois o nu não pode ser um tabu para um artista”explica Nixon. “Há cerca de 10 anos, por exemplo, conheci um jovem fotógrafo bastante tímido que estava fotografando alguns amigos parcialmente nus e eu sugeri que ele fizesse uma foto de seu próprio pênis, só pra se livrar daquele trave. Ele fez uma imagem linda no chuveiro e me falou que isso soltou algo nele. A partir daquele momento ele começou a ver tudo como um possível assunto para suas imagens. Era isso que eu esperava fazer com os outros alunos, ajudá-los a se libertar das barreiras. Em Boston, muitos cresceram em famílias católicas e, talvez por isso, eles fiquem inseguros em ralação ao o que é proibido ou não. Eu queria que eles se libertassem disso, pois eu acho que a arte não pode ter nenhum tipo de censura. Queria que eles quebrassem obstáculos, como eu tento fazer no meu próprio trabalho. Mas eu acho que em alguns momento eu fui duro demais.”, completa o artista. Nixon conta que o Boston Post foi atrás dos alunos para saber como eram as aulas e muitos afirmaram que haviam conotações sexuais, mas que ninguém nunca reclamou na escola em 40 anos de ensino. É claro que o mundo mudou nos últimos anos e provavelmente muitos não se sentiram confortáveis ou encorajados a denunciar o professor antes do movimento #metoo. De qualquer forma, Nixon resolveu parar de fotografar pessoas muito novas, agora eles só se interessa por nus de idosos. E o que as irmãs acharam desta situação? “Elas ficaram envergonhadas e me chamaram para conversar. Eu expliquei o que eu fiz e quais eram os meus objetivos com os alunos, assim como estou falando com você. Então elas falaram que tudo bem, poderíamos seguir com a série e com as exposições”, explica.
“Fico um pouco incomodado porque as pessoas leem aquela matéria e começam a assumir coisas sobre mim e ficam contra o meu trabalho sem saber o que realmente aconteceu. Se prendem nessa informação e não prestam atenção em mais nada. Mas infelizmente isso não irá sumir, tenho que apenas baixar a minha cabeça e continuar trabalhando, fazendo o melhor possível”, pondera. Muitos abusos acontecem nesse meio e eles não são, obviamente, permitidos. Mas, independentemente das questões sobre os procedimentos de Nixon como professor, é preciso separar o artista do ser humano para entender a relevância do trabalho de qualquer criador. Hoje sabemos, por exemplo, que Paul Gauguin foi uma figura arrogante e abusiva e, por isso, suas últimas exposições vieram acompanhadas de uma revisão de sua vida pessoal e caráter, mas nenhum curador ou diretor de museu concorda que seu trabalho deve ser totalmente cancelado da História da Arte por causa de suas atitudes criminosas.
Para fazer fotografias intimas e sensíveis como as de Nixon, é sempre preciso estabelecer uma relação próxima e de confiança, assim como aconteceu com as irmãs ao longo de anos e outras obras onde a própria pele é protagonista. São as observações aproximadas, afinal, que mudam a nossa própria percepção de como o tempo está passando – ele fica quase tangível, por exemplo, quando acompanhamos as transformações da epiderme de um bebê, um idoso ou um doente terminal. “A fotografia, diferente da pintura, sofre pela falta de sensualidade. A pele não diz muita coisa, mas pode sugerir muito. Isso faz com que seja um elemento interessante para trazer sensualidade à fotografia”, explica. “Talvez seja impossível captar a intimidade em uma fotografia – como compartilhamos nossas vidas, sentimentos, pensamentos e corpos -, mas mostrar como poderia ser é a minha forma de amar o fracasso”. O que Nixon nos oferece é uma crônica honesta e real de vidas em sua privacidade. Imagens em que podemos acreditar.