“Cobri meu corpo de barro e fui. Entrei no bojo do escuro, ventre da terra”. Assim começa o poema que Celeida Tostes escreveu em 1979. O texto faz parte da obra Passagem, composta também por 23 fotografias da performance que a artista fez em seu apartamento: ela cobriu o seu apartamento de Botafogo de terra e fez uma espécie de ovo de argila em volta de si e de onde renasceu. A mostra O Ventre da Terra, organizada pelo galerista Gustavo Nóbrega, que abre hoje na Galeria Superfície, parte desse belíssimo e simbólico trabalho. “Estamos vendo tantas pessoas morrerem, mas ao mesmo tempo existem muitos nascendo. Minha ideia era reunir obras que falam, de alguma maneira, sobre morte e vida; que trazem a ideia de fertilidade e transformação”, explica Nóbrega. O contato com a terra lhe pareceu, então, essencial – especialmente no momento em que vivemos: mergulhados no mundo digital, muitos de nós percebemos que a presença da natureza é urgente e vital nas nossas vidas e nos questionamos sobre nossa forma de estar no mundo. Passagem é um trabalho visceral e lírico que fala sobre tudo isso. Apesar de ser uma das mais icônicas performances dos anos 1970, segue atualíssima reverberando essa busca pela conexão com a origem.
O diálogo com os trabalhos de Anna Maria Maiolino é certeiro. Vida Afora — Fotopoemação e Sou Um Múltiplo de Oito e Sou Um Em Oito retomam as ideias do ovo – origem de tudo – e do casulo – uma forma de proteção da vida. “Eles reivindicam sua forma frágil por excelência, operando tensões entre a vida e a morte. Um único gesto abrupto e tudo está prestes a rolar, rachar, cair, quebrar. No caso de Maiolino, não é exagero dizer que a relação com o ovo reflete condições existenciais amplas (dentro e fora, morte e vida, cheio e vazio), mas também condições sócio-políticas do ser mulher. Seu ovo é ambíguo”, escreveu Pollyana Quintella para o texto da mostra.
Uma das obras que mais chama a atenção é Posta, de Nydia Negromonte, exposta na 30ª Bienal de São Paulo, curada por Luis Pérez-Oramas. Trata-se de uma instalação de frutas e legumes – elementos orgânicos – cobertos por argila que seca formando uma casca rígida. Ao longo do tempo a natureza responde de diferentes formas: alguns apodrecem; outros quebram a barreira proposta pela a artista; e, outros geram vida nova! Impossível não pensar em como o homem atravessa e esmaga a natureza e ela, toda poderosa, insiste em renascer entre os rasgos do asfalto.
A argila e a maquiagem eram elementos frequentes no trabalho de Tunga , que via o material como potente forma de falar sobre metamorfose, transitoriedade e encarnação. “Vejo arte como um processo de transformação contínua e que a grande transformação da matéria passa por mutações paulatinas. É importante saber que as coisas não estão paradas”, revelou o artista em uma entrevista à Casa Vogue. Para a coletiva, o galerista escolheu uma escultura da série Lips, feita em 1992, com bronze e maquiagem. Se pudesse, Tunga certamente estaria no vídeo feito por Neide Sá que retrata as experiências corpo-matéria-corpo em oficinas comandadas por Hélio Eichbauer – o cenógrafo propunha exercícios para desdondissionar o corpo por meio do contato com materiais orgânicos, rituais primitivos, improvisações e expressão corporal. A ideia da mutabilidade permanente também aparece no trabalho Plantação — Intervenção, criada por Lotus Lobo originalmente para a célebre exposição Do Corpo à Terra, curada por Frederico Morais em 1970: o visitante poderá acompanhar o crescimento de uma plantação de milho ao longo do período expositivo. Uma obra que reclama a necessidade de cuidado para que exista a vida!
Outro destaque é Trilogia (Poema-Objeto), criado por Sérvulo Esmeraldo em 1976. O artista criou um livro-objeto com poemas sobre diferentes elementos do planeta: terra, água e ar. Cada texto vem acompanhado de uma amostra da matéria que o inspira. Vale notar, ainda, a série de fotos Jogo de Esconder, de 1976, onde Mara Alvares pesquisa formas de camuflar o próprio corpo na natureza.Um grupo envolvente de obras nos faz pensar sobre formas de marcar nossa presença no mundo. Em Epidermic Scapes, Vera Chaves Barcellos imprimiu partes de seu corpo em papel vegetal, e posteriormente as ampliou em fotografias de alto contraste. Diante delas, a ampliação nos faz perder o referencial do corpo da artista, e somos levados a visualizar paisagens, relevos e geografias no mais íntimo da pele. Com a mesma ideia, Amélia Toledo marca o papel e o cimento com os pés – a forma circular se repete nos dois trabalhos, fazendo-nos pensar sobre os ciclos da vida: se é da terra que viemos, é para a terra que iremos. Na busca por reestabelecer uma laço primordial com a terra, Ana Mendieta eterniza sua existência ao marcar a própria silhueta no solo revirado. Para a instalação Amassadinhos : Celeida Tostes convidou diferentes figuras que passaram pelo Parque Lage, no Rio de Janeiro, para imprimir a sua “pegada” em 149 pedaços de argila. Uma bela maneira de firmar nossa efêmera existência.