Uma galeria virtual não precisa de porta. Pois bem: ao abrir o viewroom da mostra Que Vão Que Vem, que reúne virtualmente trabalhos dos artistas Pedro França e Victor Gerhard, o espectador “entra” na Galeria Jaqueline Martins por um buraco! Do lado esquerdo, uma fogueira e uma escultura fantasmagórica criada por Pedro com tecido verde chroma key. Do lado direito o filme Des/Caminho criado por Victor entre 1979 e 1980, que dialoga com o vídeo de Pedro que intitula a mostra. “A nossa ideia era fazer esse andar bastante claro, com luz chapada e branca como nass farmácias. A grama, a parede dourada, o tubo de luz fluorescente na arara das roupas – tudo foi usado para construir esta atmosfera. E quando você vê o fogo num lugar claro assim significa que algo deu errado. É o oposto da imagem do fogo na penumbra que remete ao aquecer, ao iluminar , um lugar para reunir e contar história. A fogueira aqui é uma espécie de escultura e traz a ideia de colapso! A exposição tem uma vibe fantasmagórica em diferentes planos, tanto nas imagens dos trabalhos quanto ao fato de ser uma mostra online que remete a uma galeria vazia”, explica Pedro França.
Diferente da maiorias dos viewroom criados por aí, o projeto não pretende simular a experiência de uma visita física com 3D toscos (que definitivamente não reproduz a realidade) ou se reduz a publicar uma seleção de fotos de obras feitas para uma vivência in loco. Apesar de escolher algumas obras criadas em mídias mais tradicionais, como pintura e desenho, e não ignorar a própria ideia de exposição, onde obras de arte são sobrepostas e em diálogo, a dupla e a equipe da galeria criam uma atmosfera única e mais coerente com as possibilidades de experimentar arte que temos no momento. Talvez por serem mestres em abraçar a “tosquice” da vida real, Pedro e Victor acertam o tom perfeito utilizando um mix de modelos 3D, fotografia e imagens do próprio circuito de segurança da galeria. O público “percorre” o ambiente e “observa” detalhes de cada obra por meio de vídeos criados em parceria com Rudá Cabral e, embora tenha sido projetado com base num espaço real, o da galeria, o projeto não segue as limitações físicas, temporais e lógicas deste lugar.
Ambos os artistas trabalham com a apropriação de códigos; imagens, estratégias e tipografia de veículos de massa; e, o uso visceral de cenas cuja ressonância popular se equipara a tentativa de dimensionar o absurdo que paira sobre a sociedade contemporânea – pense, por exemplo, na mulher quebrando as garrafas de vinho no supermercado que conduz o filme Mercadorama. Os melhores trabalhos, aliás, acabam sendo os filmes criados por Pedro nos últimos 2 anos e por Victor entre entre 1965 e 1982. Thanos futebol mortes e emprego – são as palavras mais buscadas no google e também o título de uma das obras inéditas de Pedro França. Ao lidar com a ideia de ativação de fragmentos históricos, o trabalho comenta a necessidade de reavivamento de pontas soltas e realidades traumáticas do passado para a construção de novas narrativas. Como uma espécie de antena que capta todo tipo de estímulos estéticos e conceituais, o artista tem um impressionante dom de fazer um diálogo entre o supostamente erudito e a cultura popular ou marginal. Parece ser um dom que ele aprendeu no teatro onde, de acordo com o próprio artista, não há hierarquia: “A imagem nobre e a barata – é tudo igual. Nivela por baixo, vulgariza o que é único e especial”, descreve no vídeo Artist Talk. Espere encontrar, portanto, referências da história da arte (Hélio Oiticica, Isa Genzken, Véio, Lygia Pape, Rubem Valentim e Kurt Schwitters são alguns dos heróis de Pedro) ou o estudo de cor de Johannes Itten ou, ainda, a capa de um álbum do Pink Floyd conversando com imagens dos torcedores do flamengo ( time do artista!) reunidos no estádio, personagens da Marvel Comics, imagens de arrastões nas praias do Rio de Janeiro e cenas do desenho animado Scooby Doo – tudo isso intercalado com imagens científicas e ao som de uma batida ritmada que certamente te manterá desperto e sensível aos estímulos propostos pelo artista. O jogador de futebol Adriano “Imperador” aparece seguido pela estátua de mármore do imperador Adriano, viveu entre 76 d.C e 138 d.C.
“Quando visitei o Pedro pela primeira vez no ateliê dele falei nos primeiros 10 minutos: Você precisa conhecer o Victor, é uma atualização do trabalho que ele fazia nos anos 1960! Ambos fazem um comentário crítico, ácido e, às vezes, até violento sobre vida contemporânea. Eles questionam estas imagens e informações a que somos submetidos e ficamos viciados. E agora, durante a pandemia, parece que isso fica ainda mais claro”, explica a galerista Jaqueline Martins. “Certamente há uma manipulação, seja ela para o bem e mal. A questão é saber o quanto estamos sendo manipulados. É impossível fazer esse filtro com alguma segurança”, completa.
Ao comparar desenhos, colagens e vídeos que Gerhard fez nos anos 1960 e trabalhos de França de 2020 é possível encontrar muitas semelhanças, não somente na forma como estes artistas comunicam, mas também nos temas. No Brasil, “hoje é sempre ontem”, como diria Wesley Duke Lee, e é o que confirmamos ao comparar as manchetes de jornais e imagens presentes da obras dos dois artistas: se nos anos 1960 Victor apontava para problemas como pedofilia, corrupção, pobreza, marginalidade miliciana e Pedro reclama o mesmo. “Parece que estes 50 anos não nos separa. São os mesmos problemas e situações absurdas ou bizarras que vivemos. Os dois comentam suas contemporaneidades de forma fantástica, mostrando como vamos nos acostumando e banalizando o absurdo e o bizarro”, revela a galerista. Ao comentar a série de desenhos Drama carioca, criados por de 1965 Victor Gerhard, o crítico Frederico Morais comparou o artista a Nelson Rodrigues por tratar justamente da realidade surreal que vivia-se no Rio de Janeiro (Pedro é carioca e sabe muito bem do que Gerhard estava falando!).
Batalha, de 1980, de Gerhard, pode ser lido como um tratado onde apenas a resistência criativa pode combater a opressão do estado. No filme Que vão Que vem, Pedro narra: “Primeiro de junho, hoje é preciso lembrar que se nós perdermos nem os mortos estarão a salvo. Enquanto isso, o espelho fascista grita de volta, 300 e com tochas na mão. Se nós perdermos nem a propriedade estará a salvo. O saque não é um desvio em relação ao objetivo declarado de qualquer protesto, trata-se de uma questão central que ameaça a dona do mundo: a propriedade. O saque é olho por olho, dente por dente. Vocês nos tratam como coisas, nós destruiremos as suas coisas. Vocês massacram os nossos espíritos, nós roubamos a sua alma. (…) alguns privilegiados recebem em seus corpos o mesmo tratamento dado à propriedade – às casas, às joias, às obras de arte, aos pets – outros são tratados apenas como pessoas e massacrados”.