“A arte pode ser um agente de mudança ou pelo menos um gatilho para a desautomação da linguagem e dos afetos, podendo nos ajudar a clarear impasses e imaginar novos entendimentos para o futuro”, anuncia o curador Diego Matos que reuniu trabalhos de nove artistas para a mostra No presente, a vida (é) política, que abre hoje na Central Galeria. A exposição, elaborada a partir de escritos do filósofo italiano Franco Berardi e da cientista política belga Chantal Mouffe, busca reafirmar a importância de não viver de utopias e sim ser ativo no presente para propor transformações reais e possíveis. São obras reavivam conflitos, dissensos e antagonismos necessários à esfera pública como uma forma de escancarar este presente e mostrar que a arte contemporânea atua diretamente na vida e, consequentemente, na política. “Não existe essa separação entre arte formal e política. Qualquer ação ou gesto artístico que tem uma demanda pública é político.”, explica o curador.
Ao descer as escadas para o subsolo do prédio do IAB, onde funcionou o lendário Clube de Artistas e Amigos da Arte e hoje abriga a Central Galeria, você irá escutar o assovio de uma música conhecida por muitos: é possível reconhecer quase que imediatamente a melodia do Hino Internacional Comunista. Trata-se da obra sonora de Gustavo Torrezan, chamada presença. O trabalho busca reverberar a forte presença do comunismo dentro do imaginário popular que quase sempre ganha leituras equivocadas, como uma espécie de sátira: o movimento pode ser visto uma ameaça; como uma retórica romantizada; ou, aparece muito confundido com o socialismo real. “Eu perguntei para várias pessoas se ela conheciam o hino e pedia para elas assobiarem. A ideia é ativar a forte presença dessa memória e desse triplo sentido, e também lembrar que muitas vezes essa melodia é cantarolada enquanto as pessoas trabalham. Ou seja: elas estão dizendo algo, mesmo que inconscientemente, sem falar nada”, explica o artista.
Logo nos primeiros passos, ainda nas escadas, é possível ver o negativo de carimbos encontrados em relatórios, inquéritos, investigações em documentos do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). A série protocolo (são paulo), de Rafael Pagatini, dá mais uma pista do que está por vir, pois traz combinação de brasões e palavras que manifestam mensagens ligadas a repressão política e ideológica, além de expor as instituições do estado que participaram do processo de fiscalização durante a ditadura militar brasileira. Vale notar que o símbolo do DOPS é o cavalo marinho, representando a ideia de que a vigilância vem das profundezas. Nesse sentido, o trabalho está muito bem colocado justamente no acesso ao espaço subterrâneo onde os artistas se reuniram e criaram um lugar de resistência e trânsito livre no período de repressão.
Há alguns anos, o curador começou a perceber que há uma geração de artistas que nasceu com a democratização do Brasil e o fim da ditadura militar e que começou a olhar para as memória daquela época de maneira mais desassombrada do que aqueles que vivenciaram os anos de chumbo. “Acredito que talvez aqui haja uma forma interessante de cascavilhar as lembranças desse passado e ressignificá-las no presente.”, explica o curador. Apesar de alguns artistas cavarem o passado e outros puxarem um fio para a ideia de futuro, todos eles estão trabalhando uma ativação presencial, propondo reflexões e transformações para o momento atual. “O Berardi ressalta essa ideia de que não temos mais condições de imaginar a partir de grandes utopias, pois não conseguimos mais alcançar esse futuro almejado e idealizado no século 20. É preciso voltar para um processo de reinvenção do presente. É preciso trabalhar com a ideia do que é possível acontecer agora”.
Em nós sabemos, Dora Smék e Paul Setúbal fazem uma reprodução de suas mãos em bronze puxando uma corrente tensionada que carrega uma caixa comum de arquivo, também em bronze. A obra é a materialização de uma lembrança que está presente em toda a exposição sugerindo uma reflexão sobre esses arquivos da ditadura questão vindo à tona e os arquivos mortos que foram escondidos durante tanto tempo. “Queremos falar também sobre o peso desses documentos. É uma caixa de ferro lacrada que você não consegue acessar, mas ‘nós sabemos’ o que tem dentro”, explica Smék. “A verdade é que todos nós sabemos o que aconteceu, temos ciência de todas as ações e crimes que aconteceram durante ditadura, independentemente de vermos ou não os arquivos. Mas é tudo uma questão burocrática, o que não se apresenta, não existe. E o trabalho fala um pouco sobre esse lugar”, continua Setúbal. Trata-se literalmente de um arquivo suspenso. A dupla propõe, ainda, uma referência ao texto ritmado O romance dos massacres, no qual diretor italiano Pier Paolo Pasolini relatava que sabia o nome de muitos agentes repressores e criminosos, mas não poderia dizer. Muitos historiadores defendem que a provocação pública teria levado a seu assassinato.
“A grande questão é que precisamos abrir esses arquivos e recondicionar essas informações do passado, tratar de elementos que estão escusos no Brasil. Não é à toa que estamos vivendo o renascimento do autoritarismo no país. Toda esta vivência é em função da indisponibilidade ou falta de interesse em revisar estas questões do passado.”, aponta o curador.
Ainda sobre a ditadura e experiências de silenciamento e violência, psicológica ou física, vividas até hoje, como no caso da morte de Marielle Franco, Dora cria a instalação silenciadores, na qual ela copia em bronze o dedo de 14 pessoas e os coloca sobre canos, na altura da boca de cada uma das pessoas. As hastes fixadas num piso de britas visam reproduzir abstratamente o gesto do silêncio, com os dedos na frente das bocas, e também remetem ao cano que se coloca nas pistola para silenciar os disparos das balas.
Na performance porque os joelhos dobram, Setúbal usa um cassetete para bater constantemente contra uma parede branca até a exaustão. A ideia é ressaltar uma demonstração gratuita de força e gasto extremo de energia como algo que não constrói absolutamente nada. Ainda sobre as agressões do Estado, o artista elabora a série de esculturas compensação por excesso, para a qual faz reproduções em bronze de cassetetes deformados pelo próprio golpe contra o seu corpo. “A ideia é materializar um pensamento coletivo de resistência e propor um acesso do impossível, esse corpo fere a ferramenta. Trago à tona uma política violenta do Estado, mas agora o corpo é mais forte”, revela o artista. O trabalho nasceu de uma experiência pessoal. Na adolescência, ele levou um golpe na coxa e caiu, mas demorou cerca de 10 segundos para que seu corpo percebesse o que aconteceu e começasse a responder em dor. “Todos esses trabalhos são uma tentativa de ressignificar essa experiência e de lidar com essa falta, com essa pausa entre a ação e a dor”, explica.
Gabriela Mureb instalou dois trabalhos impressionantemente conectados com o discurso de Setúbal. Em para levar um choque, toque nas hastes metálicas, ela sugere que o espectador sinta a dor do choque ao colocar as mãos na instalação. E, em Máquina #4 – pedra, ela cria um mecanismo que golpeia uma pedra constantemente. A energia, aqui, também concentra-se em agir contra um corpo que muito provavelmente irá ferir a ferramente de volta. Há, aqui também, um excesso de energia gasta para um resultado quase nulo. O trabalho pode representar, ainda, a ideia de discussões e relações que se estabelecem pelo choque, pela necessidade de ir de encontro e não ao encontro, gerando um desgaste desnecessário e que não nos leva a lugar algum.
Além da instalação sonora, Torrezan elaborou mais duas obras que apontam para uma violência do Estado. Em o terraplanar que se finda um mundo, o artista apoia uma esfera de sal com as palavras positivistas da bandeira brasileira sobre um campo de terra. O trabalho dialoga diretamente com a bandeira afro-brasileira criada por Bruno Baptistelli que, por sua vez, faz uma analogia à obra African American Flag elaborada por David Hammons em 1990, propondo a aplicação das cores da bandeira Pan-Africana na nacional sob o discurso de que essa paleta diz muito mais sobre o Brasil que a original.
A instalação o terraplanar que se finda um mundo também ganha potência em conversa com a escultura todo castelo é um castelo de areia, americano. “Gosto de falar sobre essa ideia de algo que é construtivo e edificador, mas ao mesmo tempo é uma falácia’, explica o artista que fez a escultura a partir de terra indigena Guarani e o molde de um copo americano, abordando também a questão da apropriação de terras e história de violência para a construção deste local que chamamos de “América”. “Essa construção parte do roubo de terra e tem uma estrutura frágil e que tende esfarelar”, completa Torrezan.
“O possível”, proposto pelo curador, para transformar o presente pode ser também, por exemplo, um processo de reinvenção desse cotidiano. A coreógrafa Clarisse Lima questiona sua condição de mulher e mãe, enquanto Fernanda Gassen e Fernanda Pessoa falam sobre a ditadura e violência do corpo feminino. Em métodos, Gassen reproduz as posições e exercícios de etiqueta a partir de um manual usado por sua mãe. Já em -46186 , Pessoa contabiliza de forma poética e gráfica o número de mulheres que morreram como vítimas de feminicídio entre 2003 e 2013 ao escrever os nomes próprios dessas mulheres.
A mostra reivindica, portanto, o lugar público da arte e faz um chamado para a ação no presente diante da crise catastrófica que o capitalismo financeiro impõe a todos. “A arte não funciona só no campo onde ela foi criada, ela é também um vetor social de transformação e de resposta a questões importantes. Para mim, uma das possíveis formas de mudança é dar protagonismo para a arte visual que é, por excelência, o lugar da experimentação. Existem formas de pensar a questão política que não estão tão vinculadas ao debate hegemônico e o Bifo coloca a arte num lugar de protagonismo para essas discussões”, explica o curador. “Por meio dos mais variados gestos sensitivos, os artistas aqui reunidos refletem sobre a possibilidade de uma vida politizada, coletiva e libidinosa, que não se deixa findar e que não espera pelo futuro prometido da vida religiosa, da bonança econômica neoliberal e da crença velada nas formas de operar a política democrática e liberal”, conclui o Diego Matos. Agora só nos resta agir.