Mestre espiritual e artístico para uma geração mais jovem de artistas, o angolano Paulo Kapela nos deixou ontem. Ele se tornou um modelo por sua maneira não ortodoxa de viver, mas também por sua forma única de produção de arte por meio de combinações de objetos díspares para criar novos contextos. Dizem que seu ateliê é uma espécie de santuário preenchido com arranjos surreais de itens encontrados que combinam referências da filosofia Bantu, catolicismo, rastafarianismo e iconografias socialistas. Itens profanos, como anúncios, são colocados ao lado de objetos religiosos, como crucifixos e velas e as inúmeras colagens trazem retratos de personalidades do seu dia-a-dia, mas também políticos e pessoas da mídia internacional.
Ao reunir, num mesmo plano, objetos e imagens aparentemente díspares, as instalações de Kapela problematizam as definições de sagrado e profano, propondo um processo criativo que convoca, simbolicamente, uma dialética da ordem e do caos propondo a concepção de uma nova temporalidade e existência a esses fragmentos da realidade.
Em muitas dessas colagens, Kapela colocou um pequeno espelho na testa da pessoa retratada – uma referência às tradicionais esculturas Nkisi, típicas do Congo, que trazem um espelho na barriga para ativar o chamado “poder mágico”. Outra característica comum são os escritos que enquadram as colagens, mencionando seus colegas artistas, bem como outros elementos do universo pessoal de Kapela.
Kapela representou Angola na 52ª Bienal de Veneza, em 2007, e seu trabalho é considerado, por muitos, um ponto importante no contexto da reconciliação entre as culturas européia e africana, bem como uma lembrança de uma sociedade fragmentada e ferida após os anos de guerra. Toda sua produção artística conjuga o passado e o presente da sua vida pessoal e também de Angola. Ele é capaz de recriar histórias paralelas à oficial por meio de uma perspectiva única, combinando narrativas reais e fantásticas e, assim, relatar os pesadelos e utopias de Luanda. Rest in power.