Criado em 1969, o Panorama da Arte Brasileira, uma das exposições mais antigas do país, era realizado anualmente até 1993 e somente a partir do ano 1995 é que sua realização passou a ser bi-anual, alternando com a Bienal de São Paulo, reafirmando-se no circuito das artes nacional.
Inicialmente as edições do Panorama envolviam divisões das linguagens artísticas e ações que estariam voltadas para a aquisições de obras com o intuito de refazer o acervo do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), ambicionando representar a arte nacionalista e abarcar as produções contemporâneas, principalmente a produção paulista.
Hoje, em sua 38ª edição, com o título “Mil Graus”, curado por Germano Dushá e Thiago de Paula Souza, com a curadoria-adjunta de Ariana Nuala, o Panorama propõe desafiar questões de temporalidade e espacialidade através de produções artísticas que vibram transformações e pluralidade em estéticas contemporâneas convergentes. A mostra reúne 130 obras, sendo 79 inéditas, com 34 artistas de 16 estados brasileiros, e evoca a ideia de um calor-limite que provoca transformações em sua chave conceitual, “onde tudo se transforma, fazendo referência às condições climáticas e metafísicas intensas que desafiam e conduzem a processos inevitáveis de transmutação”.
Embora a exposição não esteja segmentada em núcleos, cinco eixos temáticos nortearam as pesquisas curatoriais: Ecologia geral, Territórios originários, Transes e travessias, Corpo-aparelhagem, e Chumbo tropical.
- Ecologia geral: são destacadas noções ecológicas e práticas ambientais ampliadas que se orientam por uma visão de interconectividade total;
- Territórios originários: estão narrativas e vivências de povos originários, quilombolas e outros modos de vida fora da matriz uniformizante do capital, capazes de refletir visões alternativas sobre a invenção e a atual conjuntura do Brasil;
- Transes e travessias: abordam conhecimentos transcendentais, práticas espirituais e experiências extáticas que canalizam os mistérios vitais.
- Corpo-aparelhagem: é a linha que busca evidenciar intervenções experimentais e reflexões sobre a contínua transmutação corpórea dos seres e das coisas, com seus hibridismos e suas inter-relações;
- Chumbo tropical: traz leituras críticas que subvertem imaginários e representações do Brasil, colocando em xeque aspectos centrais da identidade nacional;
Em entrevista ao AQA, as pessoas curadoras do 38º Panorama de Arte Brasileira falaram sobre os processos curatoriais, suas adaptações necessárias ao novo projeto expográfico por conta da mudança do local, as escolhas dos artistas e coletivos, e as muitas surpresas que envolveram as viagens de pesquisa.
Confira a seguir destaques das entrevistas:
Sobre processos curatoriais
Germano Dushá (GD): Esse é o 38º Panorama da Arte Brasileira, que se chama Mil Graus. A gente escolheu esse título pensando nessa expressão, que é uma expressão muito popular em alguns centros urbanos do Brasil, e que traz uma ambiguidade que interessa muito a gente, porque é uma coisa que pode ser muito boa, mas que também pode significar uma situação tensa, uma condição extrema, né? Quando a gente fala assim, a coisa tá “mil graus” é porque tá tensa. Então, isso para gente falar de uma situação muito intensa, de uma condição extrema, fazia muito sentido. Porque, por mais que a gente pense em mil graus como uma temperatura máxima, uma ficção de que existiria uma temperatura onde tudo se derrete, se transforma e se desfaz, a gente tá interessado no que vem antes.
Ariana Nuala (AN): Como era no MAM, a gente tinha feito antes um projeto expopográfico para lá. E quatro meses antes da exposição abrir foi quando a gente soube, de fato, que ia mudar e a gente vinha para o terceiro andar do MAC. Assim, a gente está ocupando o terceiro andar e o térreo. Diante disso, algumas obras a gente começou a entender que precisavam de adaptações. Por exemplo, Adivânio Lessa, que trabalha com esculturas enormes, com cipós e madeiras, e Jonas Van & Juno B. (CE) foi uma coisa que a gente já foi entendendo junto com eles o que seria, mas essa mudança, de certa forma, fez com que o projeto crescesse.
(GD): É uma expografia muito viva mesmo sendo simples. A gente tem um super arquiteto que pensou esse sistema que também segue certos partidos que o MAC impõe, porque todos esses painéis que a gente construiu vão ficar para o MAC, de doação do MAM para o MAC. E isso foi um modo da gente também fazer uma coisa que fosse sustentável dentro dessa negociação toda, que ficasse depois para o museu. E que desse contorno, ele parte de uma estrutura matriz e aí ele tem diferentes possibilidades, tanto de montagem quanto do tipo de material que a gente usa na superfície. Pode ser a madeira, pode ser o policarbonato, pode ser a madeira branca, pode ser a madeira preta, pode ser o policarbonato translúcido. É simples e complexa.
(AN): Tem uma coisa que a gente discutia muito durante nossos processos de conversas, que era essa ideia do calor enquanto um lugar do erótico também, enquanto um lugar que o Mil Graus pode ser. Tem uma relação do Mil Graus que é do tesão, que ele perpassa esse encontro, que ele é muito sutil, mas faz a gente suar, de fato.
(GD): Esse mil graus é o quente absoluto, é o calor limite que a gente chama, né? Que seria essa condição tão extrema que não há nada que possa acontecer que não seja a transformação. Que a transformação é um destino imediato e incontornável. Essa chave conceitual que a gente usa para poder abordar uma situação, um panorama. A gente fala muito isso. O panorama é uma pretensão que é falha do início, porque você não se consegue fazer um panorama de um país continental com tantas matrizes culturais, com tantas complexidades sociopolíticas como o do Brasil.
Sobre artistas e/ou coletivos presentes na exposição
(AN): Deixa eu falar logo da Marlene [Almeida – PB], que eu acho que é essa artista de Bananeiras, na Paraíba, ela mora em João Pessoa, e tem 82 anos. Ela trabalha pensando muito em geologia, é filósofa, mas sempre entendeu a prática política de se trabalhar com a terra. Há 50 anos atrás, discutia essas questões de como fazer uma geotinta e não era pra ensinar as pessoas a simplesmente fazer tinta, mas ela queria ensinar as pessoas a se importar com a terra, uma relação política com luta camponesa, tem a ver com os lugares que ela dava aula, ela deu muitos cursos durante a vida toda, em vários contextos diferentes, ela deu aula em Cuba, na rádio, pra o país inteiro. E hoje estará no Mil Graus.
(GD): A gente tem artistas de todos os lugares, grandes mestres e artistas muito jovens: tem uma líder espiritual, a dona Romana de Natividade – líder espiritual e escultora, e essa escolha já aponta para alguma coisa, né? A gente tem um artista Yanomami e temos um super pintor contemporâneo, tem uma super escultora também de São Paulo. Então, propor esse diálogo já mostra, já é um modo da gente dizer que isso nunca é fixo, essas coisas sempre podem variar, sempre tem uma pluralidade que a gente não dá conta.
(TP): Nós temos os desenhos dos Yanomamis. Os Yanomamis só começaram a desenhar, do jeito que a gente entende de desenho, no século XX, na segunda metade do século XX. Então, os Yanomamis estão ali nessa fronteira entre o Brasil e a Venezuela. A maneira como eles desenham, de alguma forma, é a maneira como eles veem o mundo. É uma outra ideia de 2D mesmo, outra ideia de profundidade e que não é necessariamente igual à maneira que ocidentais ou pessoas ocidentalizadas olham o mundo. E tem muito mais artistas.
Sobre desafios, surpresas e desdobramentos do Panorama
(GD): Acho que a gente alcançou a energia da exposição. Dá para sentir. Esse sistema onde a gente coloca as coisas todas em diálogo, em confronto e a gente vê o que surge daí, a gente vê essa energiazona, a gente vê esse “mil graus”. Foi difícil, foi um tudo um grande desafio, mas eu acho que a gente estava preparado. Pensamos, se estamos falando de transformação, estamos falando de condições extremas, situações limites, a gente tem que abraçar quando isso aparece, né? Acho que não foi só no discurso, no tema, na discussão conceitual. Na prática tivemos que abraçar grandes desafios em quatro meses.
(AN): E o catálogo normalmente a gente convida, quando tem catálogo, outras pessoas para escrever sobre os artistas. A Bienal faz isso, outras exposições fazem isso, e aí a gente se deu um pouco a essa tarefa e desafio de escrever sobre os 34 artistas. Entendendo que não era um texto meu, ou do Germano, ou do Thiago, mas era um texto que a gente estava tentando encontrar uma voz, quase como se a gente encontrasse o vocabulário do calor, ou do que seria esse mil graus. Então tem algumas palavras que se repetem propositalmente, meio que nessa massa do que a gente estava tentando entender, do que eram os trabalhos.
(GD): Tem um grau de transformação que acontece no intangível, no imaterial. Isso tá muito presente e vai se revelando tanto de maneira mais direta em agentes que lidam com isso, e também quando a materialidade assume um certo grau de intensidade. Quando isso a gente pensa: tem alguma coisa aqui que faz vibrar e que faz a gente sair do plano da matéria e entra em outra dimensão. E essas são as linhas gerais dessa exposição.
(AN): O Panorama tem um projeto que é de podcast, a gente tem cinco episódios. Os áudios que tivemos acesso da Dona Romana, porque a gente descobre de surpresa que o neto dela tem um projeto de memória que são com vários áudios gravados, a gente foi remexendo e vai entendendo que ela está circundada nas nossas conversas com os outros artistas e é muito sobre o que é o tempo agora, porque parece que ela vive, espera e cria sobre o “Mil graus”. O mil graus pra ela, talvez, dentre os artistas não fosse uma ficção, é sobre essa eminência de algo que está ali verdadeiro, uma recuperação mesmo da própria presença dela, não é uma ausência. Todo mundo está acostumado a ligar essa presença à materialidade, então, essa sinergia do próprio mil graus mesmo, que é essa sinergia que acontece, eu vi muito que ela é nossa e isso está nos áudios do podcast.
Artistas participantes
Adriano Amaral (SP) Marlene Almeida (PB)
Advânio Lessa (MG) Melissa de Oliveira (RJ)
Ana Clara Tito (RJ) Mestre Nado (PE)
Antonio Tarsis (BA) MEXA (SP)
Davi Pontes (RJ) Noara Quintana (SC)
Dona Romana (TO) Paulo Nimer Pjota (SP)
Frederico Filippi (SP) Paulo Pires (MT)
Gabriel Massan (RJ) Rafael RG (SP)
Ivan Campos (AC) Rebeca Carapiá (BA)
Jayme Fygura (BA) Rop Cateh – Alma pintada em
Jonas Van & Juno B. (CE) Terra de Encantaria dos
José Adário dos Santos (BA) Akroá Gamella (em
Joseca Mokahesi Yanomami (RR) colaboração com Gê Viana
Labō (PA) & Rafaela Kennedy (AM) e Thiago Martins de Melo) (MA)
Laís Amaral (RJ) Sallisa Rosa (GO)
Lucas Arruda (SP) Solange Pessoa (MG)
Marcus Deusdedit (MG) Tropa do Gurilouko (RJ)
Maria Lira Marques (MG) Zahỳ Tentehar (MA)
Marina Woisky (SP) Zimar (MA)
Serviço:
38º Panorama da Arte Brasileira: Mil graus
Local: Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC USP
Período expositivo: 5 de outubro de 2024 a 26 de janeiro de 2025
Entrada gratuita