Di Calvalcanti e o nascimento do mercado de arte brasileiro

Conheça mais sobre Di Cavalcanti e confira Jones Bergamin falando o mercado de arte brasileiro e a recepção dos modernos internacionalmente

por Beta Germano
9 minuto(s)

Conheça mais sobre a vida e obra de  Di Cavalcanti,  entenda como nasceu o mercado de arte brasileiro e como os nossos modernos são visto pelo mercado internacional

Di Cavalcanti foi um pintor, desenhista, ilustrador e jornalista nascido em 1897 no Rio de Janeiro. A cidade, aliás, sempre aparecia sem sua obra como um grande tema, atravessando sua produção mesmo nos tempos em que viveu em outros lugares. Ainda no Rio, muito jovem, publica caricaturas em jornais e revistas, revelando um talento sem igual para o desenho. 

Depois, com quase 20 anos, se muda para São Paulo, onde estuda direito na faculdade do Largo de São Francisco, e trabalha como ilustrador. É com sua vinda pra capital paulista que ele faz sua primeira exposição de desenhos e caricaturas, inclusive, na redação da revista A Cigarra. No fim de 1917 ele visita a polêmica mostra individual de Anita Malfatti, sobre a qual tratamos no nosso 4o episódio, e essa experiência o estimula a perseguir mais a fundo estudos de pintura. 

Aí em 1918 ele começa a frequentar ateliês livres de professores europeus, enquanto também integra um grupo com alguns intelectuais da época, incluindo os nossos já conhecidos Mário de Andrade e Oswald de Andrade, que o estimulam a expor mais, tanto é que em 1919, ainda em São Paulo, ele realiza uma mostra individual chamada: Di Cavalcanti: pinturas, na Casa Editora O Livro.  A partir de 1920, ele passa a se dividir entre SP e o Rio, algo que vai fazer ao longo de toda sua vida. E em SP serão várias as individuais do artista na cidade, realizadas também em 1920 e em 1921. Essa última, chamada Di Cavalcanti: desenhos, o que mostra como para ele ainda o desenho era uma importante linguagem.

Por causa dessa última mostra e dos encontros com mecenas e artistas, parte de Di, como já contamos, a ideia de realizar o evento da Semana de 22. São muitos os motivos: a sugestão de dona Marinete, a celebração do centenário da independência do Brasil, o Carnaval, o desejo de alimentar uma cena cultural local, a vontade de chocar a burguesia provinciana da cidade, enfim: fato é que Di queria um festival para chacoalhar as fundações da sociedade paulistana, causando impacto na defesa de uma arte moderna – ainda que pouco se soubesse definir o que seria essa arte moderna dentro do contexto do nosso país, né? Di apresenta obras na exposição no salão do Theatro Municipal mas, mais do que isso, ele ilustra o cartaz e o convite, além da capa do catálogo, para o evento. Ele fica tão envolvido nesses esforços, nesse empreendimento, que abandona a faculdade de direito. E isso lhe dá uma liberdade importante.

Assim como muitos artistas de sua época, incluindo Tarsila, de quem falamos no episódio passado, Di Cavalcanti vai para Paris em 1923. Ainda que saibamos que a contribuição brasileira para a ideia geral de arte moderna reside muito numa noção nacional de identidade e um apreço pela cultural regional, nossos pintores ainda queriam formação europeia, já que as escolas aqui eram consideradas atrasadas. Di vai trabalhar como correspondente do jornal Correio da Manhã, mas vai também frequentar a Académie Ranson e conhecer importantes artistas como Picasso, Léger, Georges Braque, além de viajar para outros países para ver obras de grandes mestres do renascimento e do barroco. Só que ele é obrigado a voltar ao Brasil, porque o jornal foi fechado com uma tentativa de revolução em São Paulo em meados de 1924 – uma revolta frustrada de militares com o poder dos políticos paulistas e mineiros. 

Ao retornar para o Rio de Janeiro, Di pinta “Samba”, considerada sua primeira obra prima – nela, ele retrata um grupo de sambistas, com duas mulheres semi-nuas no centro da composição, realizada com cores bastante saturadas em uma paleta de cores muito mais iluminada do que as sombrias obras anteriores, e uma certa distorção das silhuetas. Talvez influenciado por sua carreira como caricaturista, Di nunca se comprometeu com contornos realistas em sua obra. Apenas uma pequena área do fundo da tela revela uma paisagem de morros longínquos, distantes, enquanto os personagens que ocupam quase a totalidade da superfície parecem dançar e vibrar, expandindo-se para fora do plano pictórico, como se estivéssemos vendo apenas um pequeno recorte de uma cena maior. Ali já é possível perceber o interesse de Di pelos temas do samba e do morro, o que chamaríamos de temas nacionais, populares. A obra tem uma história trágica – foi queimada em um incêndio na casa de um dos mais importantes colecionadores e marchands da arte brasileira, Jean Boghici, que mesmo com avaliações crescentes de valor da obra, nunca quis vendê-la.

Di também continuava ilustrando, desenhando por exemplo a capa do livro “O Losango Cáqui”, de Mário de Andrade, em 1926, colaborando como jornalista e ilustrador no Diário da Noite, além de atuar como desenhista no Teatro de Brinquedo. Nessa fase, filia-se ao partido comunista brasileiro, o partidão, envolvendo-se cada vez mais nas questões políticas que efervesciam na época. É também no final da década de 20 que Di começa a pinturas murais, pelos quais ficaria muito conhecido.

Em 1930, Di participa da primeira mostra internacional, The First Representative Collection of Paintings by Brazilian Artists, no International Art Center, do Roerich Museum, em Nova York, ano também em que pinta uma de suas mais importantes obras, “Cinco Moças de Guaratinguetá”, que hoje integra a coleção do MASP. Novamente as silhuetas das personagens são simplificadas e arredondadas. Ainda que as cores não sejam tão vibrantes como samba – a obra tem uma tonalidade mais puxada para o rosado, com alguns tons pastéis – Di ainda usa em certas áreas uma tinta bem saturada de vermelhos e rosas. 

Em 24 de novembro de 1932, junto com outros artistas como Flávio de Carvalho, Antonio Gomide e Carlos Prado, Di ajuda a fundar o Clube dos Artistas Modernos (CAM), no dia seguinte que Lasar Segall tinha fundado a SPAM – Sociedade Pró – Arte Moderna. Com dez anos de “atraso”, poderíamos dizer, surgem coletivos, associações, que tem objetivo de alimentar uma vida cultural em um país que contava com um circuito ainda muito restrito e incipiente. Essas iniciativas também mostravam como as poucas organizações formais que tínhamos não eram suficientes para promover a produção dos artistas, forçando-os a criar cenas independentes. 

Parece contraditório, mas o clube capitaneado por Lasar reunia figuras mais associadas ao que pesquisadores chamam de primeiro modernismo no país, o que é um termo meio problemático porque prescinde de manifestações modernas anteriores que já sabemos que existiram, e que parece criar uma noção de ineditismo ou inauguração do modernismo, o que não é verdade. Mas o SAPM tinha participação direta de vários participantes da Semana de Arte Moderna de 1922, tendo nas suas primeiras reuniões participação de Anita Malfatti e Paulo Prado, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, John e Regina Graz, Menotti del Picchia, entre muitos outros.

Do outro lado, o CAM era liderado não por Di apenas, mas principalmente por Flávio de Carvalho, que não tinha participado da Semana, e que queria ser mais autônoma, menos elitista, com a frase provocativa de Flávio: “Detestamos elites; não temos sócios doadores”. Era um deboche contra a SPAM, que se fundaram na relação de Lasar e Mário com senhoras da elite abastada, como dona Olivia Guedes Penteado. No entanto, Di não se furta também de participar das atividades do SPAM. A gente vai se aprofundar um pouco mais nesse tema quando falarmos de Flávio de Carvalho em um outro episódio!

1932 é um ano importante porque Di também acaba sendo preso pela primeira vez. Estando em SP, é acusado de ser Getulista durante a revolução constitucionalista de SP. Na verdade, a década de 30, em geral, é muito ativa para o artista. Ele se casa com sua aluna, Noemia Mourão, em 33, ano em que também publica o álbum A Realidade Brasileira (1933), com desenhos nos quais satiriza o militarismo – reforçando também sua relação com o próprio desenho como linguagem, algo que ele nunca vai abandonar. A temática sócio-política é bastante frequente nesta fase. Ao longo da década também produz três grandes murais, dois em 1934, no Cassino do Quartel do Derby, no Recife, e na Escola Chile, no Rio de Janeiro. Em 35, no Rio, participa da Exposição de Arte Social, no Clube de Cultura Moderna, e no fim daquele ano, foge com a mulher para Mangaratiba por causa da perseguição política. 

A situação torna-se tão preocupante que em 36 ele e Noêmia se mudam pra França, onde pinta com uma paleta bem mais escurecida e soturna a obra “Scene Brésilienne”, que hoje faz parte da coleção do Museu de Arte Moderna de Paris. Ainda que contendo uma espécie de cena de festa, com personagens tocando instrumentos musicais, e corpos dançantes, os tons são um pouco mais escuros e a postura corporal de algumas personagens é mais melancólica que festiva. A cena parece novamente se passar em uma área mais periférica, talvez uma favela, e retrata corpos não-brancos ocupando grande parte da superfície da tela. Nessa fase parisiense, Di trabalha também na rádio como correspondente brasileiro em língua portuguesa. Em 1937, pinta o mural para o Pavilhão da Cia. Franco-Brasileira de Cafés na Exposição Internacional de Artes e Técnicas na Vida Moderna, em Paris, obra que depois de premiada parece ter desaparecido, e em 1938, pinta a obra Vênus, temática que irá repetir alguns anos depois, muito marcada pela sensualidade da mulher e pela distorção dos contornos do corpo.

Com a segunda guerra explodindo na Europa, é só em 1940 que Di pôde voltar a viver em São Paulo, e nesta década desenvolveu uma fase madura de sua pintura de acordo com os críticos. Só que há uma tragédia na sua volta: uma parte da produção que realiza enquanto vive na França acaba se perdendo, quando um lote de mais de quarenta obras não chega a seu destino, extraviadas na viagem. Em 1940 pinta outra obra marca sua carreira: “Nascimento de Vênus”, uma cena que, inspirada pelo nascimento de Vênus de Botticelli, retrata mulheres negras de mãos e pés grandes, recebendo no que parece ser uma praia, uma mulher nua, de pele mais clara, aparentemente assustada ou desfalecida. A composição lembra também cenas tradicionais da arte renascentista em que Maria carrega o corpo de cristo.

Em finais dos anos 40, Di engaja-se ativamente no combate ao abstracionismo, já que sempre fora e continuava sendo um defensor ferrenho da figuração Em 48, inclusive, profere uma conferência na qual defende a figuração na arte brasileira, e também publica sobre o tema. Em 1951, Di participa da primeira Bienal de São Paulo – vamos contar mais desse importante evento num episódio futuro, no qual também falaremos da fundação do MASP e do MAM. O artista, inclusive, doa uma grande parte de suas obras ao museu, um conjunto de mais de quinhentos desenhos. Já na 2a Bienal, recebe o prêmio de melhor pintor junto com Alfredo Volpi. Em 1954, o MAM, Rio de Janeiro, realiza exposição retrospectivas de seus trabalhos e, em 1956, participa na Bienal de Veneza, depois de ter se recusado a integrar a mostra alguns anos antes. É na década de 50, também, que seus trabalhos murais se desenvolvem com mais fartura. A grande produção dessa arte por Di Cavalcanti se desenvolve em paralelo à rápida industrialização do país e a construção de um Brasil moderno e democrático – tanto que ele aceita o convite de Oscar Niemeyer para produzir peças de tapeçaria que vão decorar o Palácio da Alvorada, e também para pintar a Via-sacra da catedral da futura capital do país.

Vale notar que o Instituto Tomie Ohtake está em cartaz até o dia 17 de outubro de 2021, com uma mostra sobre Di como muralista. Como aponta o curador, Ivo Mesquita, o artista privilegiou narrativas líricas e sensuais, em formas e cores exuberantes. 

“Sejam esses murais paisagens com mulheres, pescadores, operários, malandros ou candangos, em situação de festa ou trabalho, transmitem sempre certa leveza em levar a vida, a despeito da realidade social que evocam. É o artista inserido no coletivo, reconhecendo-se como parte dele. Di Cavalcanti foi um grande vocal da gente das ruas, dos mercadores e trabalhadores urbanos – incluindo as prostitutas –, de suas famílias, pequenas alegrias, afetos, tragédias e desejos”.

Nos anos 60, Di ganha Sala Especial na Bienal Interamericana do México, recebendo Medalha de Ouro. É ali também quando passa a ser representado com exclusividade por uma das primeiras galerias brasileiras, a Petite Galerie, no Rio de Janeiro. Em 1963, é homenageado com uma Sala Especial na VII Bienal de São Paulo e, no ano seguinte, viaja a Paris para assumir o posto de adido cultural na embaixada, indicado pelo presidente João Goulart – só que Di não pode assumir o posto por causa do golpe militar de 1964. Continua, então, vivendo na França, quando consegue finalmente encontrar as obras sumidas nos anos 40 no porão da embaixada brasileira. 

Em 1971 o Museu de Arte Moderna de São Paulo organiza retrospectiva de sua obra e recebe prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Arte e falece, no Rio de Janeiro, em 26 de Outubro de 1976.

Assim, já indicando o início das primeiras celebrações e reflexões acerca do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, o MAM de são Paulo apresenta uma mostra de acervo bibliográfico e filmográfico na Biblioteca do museu, Paulo Mendes de Almeida, que remonta à mostra realizada 50 anos atrás, em 1971, no mesmo museu, chamada “50 anos de Arte: Di Cavalcanti”. Essa exposição, foi uma grande retrospectiva dedicada à obra de Di, apresentando pinturas, caricaturas e desenhos, gravuras, publicações, e até obras menos conhecidas em tapeçaria e joias, por exemplo. Reforçando o que narramos aqui, a mostra ajudava a entender como a obra de Di Cavalcanti era maior do que um conjunto de fases cronológicas ou de estilos. Toda a sua trajetória foi marcada pelo retorno frequente a temas como pescadores, paisagens, músicos, o samba, o carnaval, as mulheres, e é um corpo de trabalho de difícil nomeação. Agora, a iniciativa do museu resgata um conjunto importante de materiais como o catálogo daquela época e o pôster, o convite, os artigos de jornal publicados e até um filme sobre aquela retrospectiva de 71. O projeto foi pensado como uma homenagem a um dos protagonistas da arte moderna brasileira e pode ser visitada com agendamento pelo site do museu! Para os amantes de Di Cavalcanti, é uma visita imperdível. 

No próximo bloco, conversaremos com Jones Bergamin, o Peninha, colecionador, marchand, diretor da Bolsa de Arte e grande entusiasta da arte brasileira moderna, sobre os caminhos do mercado de arte no Brasil, impactado (ou não) pela semana de 22.

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