Desmistificando a inserção da Inteligência Artificial no circuito de arte

Entenda algumas das principais questões que realmente estão em jogo diante do uso de IA em produções artísticas

por Giovana Nacca
7 minuto(s)
Inteligência artificial
Há muito que venho sonhando com imagens que nunca vi I, 2022, série Eclosão de um sonho uma fantasia, Igi Lola Ayedun

Com tantas notícias sensacionalistas e falta de conhecimento sobre o assunto, somos constantemente assombrados com a tal “onda da Inteligência Artificial”. Citada como uma tendência completamente nova, essa tecnologia tem estabelecido um estado de ansiedade por meio da ideia de que todos deveriam estar aprendendo a implementar suas utilizações. Você já se sentiu assim? Calma, a realidade é um pouco diferente. Por isso, viemos desmistificar algumas crenças e esclarecer dúvidas sobre o assunto.

Inteligência artificial é só uma moda ou veio para ficar? 

Essa tecnologia não surgiu de uma hora para outra e, portanto, acredita-se não apenas que ela tenha vindo para ficar, como também “já está”. Em 1956, durante uma conferência no Dartmouth College, nos Estados Unidos, os cientistas John McCarthy e Marvin Minsky apresentaram o “The Logic Theorist”, um programa de computador projetado para imitar as habilidades de resolução de problemas de um ser humano, que é considerado por muitos como o primeiro programa de inteligência artificial. 

Hoje, quase sete décadas depois, nós utilizamos a IA espontaneamente em nosso cotidiano: quando desbloqueamos a tela do nosso celular com reconhecimento facial, quando colocamos “filtros” sobrepostos à nossas imagem nos stories do Instagram, quando fazemos uma compra online a partir da lista de recomendações de um site, ou até mesmo agora, durante a escrita deste texto, quando o programa me sugere correções ortográficas.

Também não é de hoje que artistas visuais têm utilizado essa tecnologia como aliada para criação de seus trabalhos. Em 2018, Bruno Moreschi – provavelmente o artista pioneiro em utilizar IA no Brasil – apresentou sua obra “Outra 33ª Bienal” na Bienal de São Paulo Afinidades Afetivas, que propunha a elaboração de um arquivo alternativo ao da instituição sobre a mostra, que seria alimentado por pessoas externas à organização por meio de ferramentas de IA.  

Portanto, temos o senso de que a tecnologia em questão não é uma “moda”, ela tem evoluído e sido implementada gradualmente, distante do terrorismo que circula na internet. Mas nos últimos meses o assunto entrou em alta por conta do surgimento de ferramentas geradoras de imagens, que podem ser acessadas por computadores simples através da internet, e que são vendidas como obras de arte.

Maior tempo de trabalho seria sinônimo de maior qualidade de uma obra?

Vista da obra elaborada com inteligência artificial por Julian van Dieken, em exibição no Museu Mauritshuis, na Holanda – foto: Simon Wohlfahrt/AFP

Em março deste ano o Museu Mauritshuis foi alvo de críticas nas redes sociais por exibir uma releitura feita por IA da obra “A moça com o brinco de pérola” enquanto a original era emprestada para o Rijksmuseum. O descontentamento do público trazido nos comentários era baseado na ideia de que a “substituição” fosse um desrespeito com Johannes Vermeer, autor da versão original, por se tratar de uma imagem gerada quase que instantaneamente se comparado à do pintor “que dedicou tempo e esforço para desenhar”.

Apesar da questão não ter sido bem fundamentada, a discussão do episódio nos traz à tona um outro tema que merece nossa atenção: a aceleração das realizações humanas em consequência da evolução tecnológica.  

Enquanto muitos se preocupam com a distante possibilidade das máquinas substituírem a humanidade, talvez devêssemos estar debatendo sobre a “maquinização” dos humanos ou, no caso, dos artistas, que cada vez mais têm sido pressionados a acelerar suas entregas ainda que o processo criativo não necessariamente acompanhe essa variação ou o ritmo do sistema marcado por cada vez mais feiras, bienais e exposições. Se antigamente, um pintor da era pré-moderna ficava meses ou anos fazendo uma única pintura, hoje um profissional contemporâneo é cobrado de produzir um volume muito maior de trabalhos durante o mesmo período de tempo.

Giselle Beiguelman, artista e professora de design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, concorda com essa concepção e nos chama atenção para um fator geracional: “um dos grandes problemas atuais é a criação cedendo espaço à produtividade em escala fordista, isso é muito cruel mais ainda para artistas da minha geração, porque essa lógica produtivista pressupõe a juventude eterna”.

Como o mercado de arte tem recebido a tecnologia?

O número de exposições de arte artificial em galerias tem sido crescente em todo o mundo. Em 2019, o Barbican em Londres apresentou uma exposição inteiramente dedicada a destacar o potencial da IA no mundo da arte sob o título AI: More Than Human, apresentando obras de artistas, cientistas e pesquisadores. Outras também pipocaram por aqui e ali, mas em geral, essas exposições preliminares foram recebidas com cinismo por críticos, colecionadores e jornalistas.

Fato é que, desde o surgimento da videoarte, o mercado evoluiu muito pouco e ainda não abraça completamente obras feitas em ambiente virtual. Basta tirarmos alguns minutos para tentar lembrar de alguma obra feita com Inteligência Artificial que esteve presente nas grandes feiras de arte para comprovarmos isso. Em entrevista para a Casa Vogue, Fernanda Feitosa, fundadora da feira SP-Arte levanta alguns pontos relevantes: “[o circuito de arte] ainda carece de uma filtragem de obras de qualidade feitas e pensadas de fato para o digital. E na minha modesta opinião, carece também de um público quantitativo interessado em ter obras digitais em casa.”

Thomaz Pacheco, fundador da galeria OMA Galeria e do marketplace Nano Art Market, já aponta a falta de interesse do sistema: “O mercado de arte brasileiro é muito subdesenvolvido, ele sequer tem o uso do Big Data, por exemplo. E lá fora não é muito diferente. O mercado de arte como um todo ainda é muito tradicional e tem poucas pessoas fazendo alguma coisa diferente.”

E a precificação dessas obras? 

Segundo Pacheco, uma obra não vai necessariamente ter seu preço desvalorizado por ser feita por IA. Ele explica que, em via de regra, obras digitais que são vendidas como impressão, costumam valer menos do que pinturas a óleo, por exemplo. Mas isso não tem relação com a autoria, e sim com a conservação do material e singularidade de um trabalho que pode ou não ser reproduzido. “Acho que se tivesse uma pintura à óleo feita por uma inteligência artificial ela poderia acabar valendo a mesma coisa que outras pinturas”, ele conclui. 

A prova disto, é que vimos, em 2018, a obra Retrato de Edmond Belamy, dirigido pelo coletivo de arte parisiense chamado Obvious, ser vendida em um leilão da Christie’s por US$ 432.500 – primeira venda em leilão de uma obra de feita por IA. 

Retrato de Edmond Belamy, 2018, criado por GAN (Generative Adversarial Network) e vendido por US$ 432.500 em leilão da Christie’s em Nova York em 25 de outubro de 2018 Christie’s / Obvious

Por outro lado, o galerista também nos aponta outro fator bastante decisivo: o nome do artista. No início do mês de abril, o artista Damien Hirst lançou um novo projeto que convidava colecionadores a criarem suas próprias obras por meio de Inteligência Artificial e gerou US$ 20 milhões em apenas 9 dias. “Você acha que as pessoas estão comprando por ser uma obra do Damien Hirst ou por ser de Inteligência Artificial?”, indaga Pacheco. 

Qual o potencial político de imagens geradas por IA?

Cada vez mais, a cultura de alto estímulo visual somada a democratização dos acessos à ferramentas de inteligência artificial têm borrado os limites entre a realidade e a ficção. No mês passado, imagens fakes do Papa Francisco desfilando com um estiloso casaco branco e do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, se debatendo enquanto era preso pela polícia circularam enganando multidões. Bem ou mal, fato é que, antes de ser noticiado que as imagens não eram reais, elas haviam sido. Foram tão reais quanto qualquer fotografia na capa do jornal. Cumpriram um efeito no imaginário coletivo que não se desfez quando a verdade veio à tona. E será que, por muitas vezes, esse não seria o papel da arte?

Um ótimo exemplo do campo artístico para essa discussão é o mais recente trabalho que a artista Igi Lola Ayedun vem desenvolvendo pela Bolsa ZUM/IMS, chamado “Há muito venho sonhando com imagens que nunca vi”. A série de imagens feitas com IA, ainda que retratem personagens com pele e cabelos azuis, não negam a negritude destes e os insere em uma realidade sci-fi em que as dificuldades impostas aos corpos negros estigmatizados desaparecem. Ou seja, a artista subverte a ideia de que a disseminação de imagens distantes da realidade possui um efeito apenas negativo. 

Mas a máquina é criativa? 

Em certo sentido, esses sistemas não são considerados criativos porque apenas sintetizam novas imagens com base nos pontos de dados de fotografias pré-existentes. Mas não seria exatamente isso que chamamos de criatividade, uma nova recombinação de fatores vigentes? Por outro lado, há um número crescente de processos judiciais movidos contra as empresas por trás das redes neurais, afinal muitos fotógrafos estão sendo desvalorizados em função da implementação de sistemas que só são possíveis, no primeiro caso, por causa de suas fotografias.

Vista da exposição “Botannica Tirannica”, de Giselle Beiguelman, no Museu Judaico, em São Paulo, foto: Julia Thompson / Divulgação

O artista, educador e curador Fernando Velázquez também direciona nossa conversa para o campo da democratização. Ele entende que a maior acessibilidade de tecnologias nos prova que todo mundo é criativo: “Até o surgimento da câmera digital, a fotografia era tão dependente do domínio de uma técnica complexa e específica, que quem não o tivesse não poderia ser fotógrafo”. Segundo Velásquez, o papel do artista se dá justamente diante dos embates, quando se faz necessário se reinventar: “a arte sempre trabalhou nas fronteiras do que é conhecido e do que é desconhecido”.

Mas sobre a nossa pergunta inicial, Giselle, em acordo com Velásquez, é categórica: “Acho que ela é criativa porque pode mobilizar algo fundamental quando se fala de criação, que é o imprevisto. O que me interessa é esse momento em que a perturbação acontece. Quando se perde as certezas, a inovação está dada”. Segundo ela, o artista nunca deve temer o erro e, nesse sentido, a utilização da IA enquanto ferramenta, permite que a máquina nos surpreenda, e não apenas nos obedeça: “O cientista da computação se intimida muito mais com a máquina do que nós [artistas]. No meu caso, a minha vantagem é não ser programadora. (…) Se você desafiá-lo [programa de IA] os resultados podem ser muito interessantes.”

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