Ontem foi lançado o episódio final de da minissérie The Undoing – um suspense que gira em torno de um assassinato, cujo principal suspeito é o médico Jonathan Fraser, vivido por Hugh Grant, marido da protagonista Grace Fraser, interpretada por Nicole Kidman. A história desperta suspeitas e espalha pistas falsas pelo caminho, entre maravilhosas locações na cidade de Nova Iorque.
O que chamou a nossa atenção, no entanto, foi a casa do pai de Grace, Franklin Reinhardt, interpretado por Donald Sutherland. Aparentemente ele é um grande colecionador de arte e gosta de marcar encontros The Frick Collection – um dos museus mais importantes de NY que abriga a coleção do magnata do aço Henry Clay Frick. O museu, na verdade, é a antiga casa de Frick que foi projetada por Thomas Hastings e construída entre 1912 e 1914. Detalhe: o nome do neto de Franklin, filho de Grace e Jonathan, é Henry.
Na primeira cena no museu Franklin está sentado o que aparenta ser o seu banco favorito no museu, na frente de sua pintura preferida. Segundos antes há um close na escultura do italiano Pietro Tacca que retrata centauro Nesso e Djanira, mulher de Hércules. A história do trio é a seguinte: Nesso tentava fugir com Djanira quando Hércules o matou a flechadas. Antes de morrer, no entanto, o centauro disse a Djanira que ela deveria dar o seu sangue para Hércules e só assim eles seria fiel e a amaria para sempre. Bom, a verdade é que Hércules procurava outras mulheres e Djanira passou a vida tentando segurá-lo. Por isso, ela ouviu o centuro que estava mentindo: Nesso sabia que seu sangue estava envenenado e ele iria matar Hércules também! Djanira acaba matando o amante e tirando a própria vida. Em tempo: o nome da Djanira significa “a que vence os heróis”.
Hércules pode representar Jonathan, um médico bem sucedido que embarca numa egotrip e acha que é Deus, enquanto Djanira aparece na pele de Grace: quanto mais ela tenta ajudar e buscar por respostas, mais ela pode estar envenenando o seu marido e machucando a si mesma! Franklin, como os centauros na mitologia, parece ter diferentes personalidades: às vezes ele é amável e carinhoso com o neto e a filha e em outros momentos ele revela um lado meio dark que nos faz pensar sobre seus possíveis atos sombrios. Estaria ele semeando informações venenosas para Grace com o objetivo de eliminar Jonathan da vida de sua família?
Outra escultura que aparece no museu traz à tona Hidra, um monstro com corpo de mulher e sete cabeças, que foi criado para matar o maior dos heróis, Hércules. Está familiarizada com a história da dupla? Basicamente Hércules passa por bons bocados para matar Hidra pois toda vez que ele corava uma das suas cabeças, outras novas nasciam…é um problema sem fim e que só cresce como se as cabeças do monstro fossem gremlins ( se vc nasceu nos anos 1990, provavelmente não vai entender essa referência!).
Hércules só consegue acabar de vez com Hidra e todos os problemas que ela causa com a ajuda do sobrinho que queimava as cabeças cortadas para elas não crescerem mais. Atenção para um pequeno grande detalhe: Hércules guarda o sangue da Hidra depois de matá-la, pois sabia que ele era venenoso. É com esse mesmo sangue fatal que ele mata Nesso ( da outra escultura!) para resgatar Djanira que o mata com o sangue envenenado de Nesso…que originalmente era o sangue de Hidra!
Agora coloque Elena no lugar de Hidra e você vai entender TU-DO. Elena era um problema que só crescia na vida de Jonathan e quanto mais ele tentava se livrar desse drama, maior ele ficava. Elena foi se infiltrando cada vez mais. Será que ele pede ajuda para eliminar Elena de sua vida? Apenas lembre que no final das contas Hércules é morto pelo sangue de Hidra, sendo Nesso e Djanira somente fantoches deste destino inevitável.
Outra obra que aparece no momento em que Grace vai encontrar o pai em um das galerias da Frick Collection é o retrato do cavaleiro Vincenzo Anastagi, pintado por El Greco. O personagem era um expert em fortificação e defensa e é nesse momento que Franklin fala para a Grace que ela precisa de um bom advogado para se proteger.
Do lado esquerdo de Vincenzo Anastagi há, na mesma cena, outra pintura interessante para a narrativa: The Forge, de Francisco de Goya. Embora fosse um pintor da corte, Goya foi sensível à situação difícil dos homens comuns e frequentemente captava suas vidas cotidianas, geralmente enfatizando a dignidade do trabalho ou o sofrimento da guerra. Ao analisar esta cena, o artista evoca o imaginário de resistência à ameaça francesa de Napoleão. Mais uma vez: Se você substituir os personagens da obra pelos protagonistas da trama, irá perceber que a cena da tela dialoga diretamente com um momento crucial da série que nada tem a ver com os valores do trabalho árduo.
No terceiro episódio Franklin Reinhardt está novamente na Frick Collection quando o detetive Joe Mendoza vai encontrá-lo. Desta vez vemos outra pintura: The Choice Between Virtue and Vice, pintada por Paolo Veronese entre 1560 e 1570. Trata-se de uma pintura alegórica em grande escala que representa a luta de Hércules entre a virtude e o vício – qualidades personificadas por duas mulheres puxando-o fisicamente em direções diferentes. Hércules parece estar indo para os braços da virtude, mas ele olha para o vício. O que será que ele vai escolher? O que ou quem irá, afinal, dominá-lo? Exato, não é uma mera coincidência: Jonathan está de fato lutando entre o vício e a virtude, entre duas mulheres. Em tempo: no canto esquerdo, no topo, da tela podemos ler a frase em latim “[HONOR ET VIRTUS[POST MORTE FLORET” que significa “Honra e virtude florescem após a morte”!
No quarto episódio podemos ver de forma mais clara a pintura que Franklin tanto observa a partir de seu banco preferido no museu: The Harbor of Dieppe: Changement de Domicile, pintada por ninguém menos que J. M. William Turner. É interessante comparar o artista com o próprio Franklin – ambos muito reclusos, misteriosos e excêntricos (vale lembrar que Donald Sutherland já interpretou um artista meio creep em O melhor lance e também em Tudo Pela Arte. Na tela, uma representação solar e brilhante do norte da França que foi renegada pelos críticos da época pois ele não fez uma pintura realista e sim uma imagem bastante nostálgica. De qualquer forma, a obra transmite uma mensagem sobre o poder da luz que pode nos cegar, ofuscando muitas outras coisas que estão à nossa volta. Esta pintura pode, portanto, nos mostrar como Grace está cega pela luz de Jonathan, sem ver tantas verdades que estão na sua frente! Vale lembrar também que Turner ficou conhecido por representar diferentes atmosferas, em cenários muitas vezes borrados, o que nos faz lembrar das caminhadas de Grace pela bele Nova Iorque até o amanhecer. Muitas de memórias dela, vale notar, também aparecem borradas como as pinceladas do artista britânico.
Para além das cenas no museu, a série é cheia de obras e referências. No escritório da advogada tem uma referência a Basquiat e uma tela que poderia ser de Lee Krasner, em outra cena eles discutem a venda de um David Hockney, enquanto no leilão de caridade da escola podemos ver três obras azuis do brasileiro Carlito Carvalhosa, representado pela galeria Nara Roesler! Quando Grace encontra Elena no banheiro, podemos ver ao fundo uma reprodução de O Beijo de Gustav Klimt. Certamente você já conhece esse trabalho e se tiver o enredo e a abertura do seriado na cabeça, vai perceber que a tela de Klimt tem tudo a ver com a narrativa: ele retrata uma mulher ruiva sendo beijada por um homem dentro de uma espécie de bolha de ouro. O casal parece se perder no amor mesmo estando à beira de um precipício. Não queremos dar nenhum spoiler da trama aqui, mas se você viu a série, já fez todas as conexões.