Arte na cozinha: “Desreceitas – Dez processos artísticos”

Lançamento do livro prova como cozinhar tem tudo a ver com arte

por Giovana Nacca
3 minuto(s)
Capa do livro “Desreceitas – Dez processos artísticos”. Divulgação

Idealizado pela artista Rose Klabin, com apoio do curador Rodrigo Villela, e editado pela Martins Fontes, o livro articula como diferentes processos criativos se conectam com a comida, esteja ela ocupando o lugar dos afetos, da nutrição ou tantos outros, já que é elemento que compõe as culturas humanas em suas essências. O pré-lançamento da publicação ocorreu em setembro, durante a Art-Rio, e o evento oficial de apresentação do livro ao público aconteceu no dia 13 de novembro, na Livraria Megafauna.

Em cada um dos 9 capítulos, um artista se reúne com um convidado de outra área do conhecimento para preparar um prato à sua escolha, no ateliê ou na cozinha. As conversas à mesa são acompanhadas pela Rose Klabin e as fotos desses momentos especiais povoam o livro, enchendo-o de cores e intimidades repartidas, junto às receitas escolhidas a dedo.

A autora parte, desde a apresentação, reconhecendo que o tema é amplo e perpassa recortes históricos, biológicos, sociais e identitários, para citar alguns. Aqui, a história de cada um importa e cada um dos convidados escolhe o caminho pelo qual conduzirá a conversa. Ainda nesse capítulo introdutório, ela discorre: “No meu entender, a comida reflete a maneira como o corpo interage com o mundo e como é moldado pelas práticas culturais. Comer é um ato de nutrição que vai além da sustentação, um ritual carregado de significados simbólicos, sociais e emocionais.” É uma proposta que abraça a espontaneidade dos encontros, principalmente aqueles investigando a experiência compartilhada que é cozinhar e comer. A comida é o pano de fundo para as trocas, reflexões de vida e memórias de cada um dos convidados.

Retrato de Heloisa Hariadne. Foto: Matthieu Rougé/Divulgação

Cada receita acompanha uma sugestão de harmonização com vinho, um toque que demonstra leveza e a excelência com a qual cada refeição foi pensada para integrar o conjunto. Os pratos se inserem nas dinâmicas provocadas por cada dupla, seja na reflexão sobre o fazer criativo dentro da cozinha, ou nos valores defendidos por cada convidado, que também se revelam a cada capítulo. A artista Nati Canto abre o livro com o cozinheiro e produtor cultural Felipe Ribenboim, em uma conversa animada, que vai desde reflexões a respeito das relações de gênero implicadas no exercício criativo na cozinha até sobre o processo da artista, que relata com sensatez como enxerga as expectativas sobre o discurso artístico.

Os pratos recontam histórias da vida de cada um, como da artista Sonia Gomes, que escolheu cozinhar batatas assadas com arenque e as dividiu com a psicanalista Maria Homem. Elas discutem o envelhecer e o papel que a nutrição têm para cada uma nesse processo. Já a artista Débora Bolzoni convidou a arquiteta Karol Suguikawa para repartir seu “Pãobogó” enquanto discutiam aspectos construtivos em comum no pensamento arquitetônico e na alimentação. Em seu capítulo, a artista traz que “A arquitetura, a construção, pressupõe a ideia de permanência, enquanto a comida tem a efemeridade, algo que se consome.”

Moisés Patrício convidou a pesquisadora em comida de terreiro Solange Borges para prepararem o Caruru. Essa conversa entre a comida e o espírito também está presente na troca de Ayrson Heráclito, que preparou seu Amalá para Xangô com muito dendê e o repartiu com a historiadora Rosa Couto em uma conversa rica que passou por Alfredo Bosi e Leda Maria Martins. Na conversa, Rose Klabin pergunta: “Quando você fala que fez essa performance da feijoada, você considera o ato de cozinhar a ação performática?”. Então, Ayrson Heráclito responde: “Não consigo dissociar isso no meu trabalho. O Candomblé traz os filtros pelos quais vejo o mundo. É a minha perspectiva, uma base que não é só religiosa, mas é filosófica também, dessa África pré-colonial que ainda sobrevive aqui no Brasil, nos quilombos e nos terreiros, onde tive boa parte da minha formação. Minha formação acadêmica foi muito sudestina, ocidental, com aquela história geral na qual você não vê a África… Isso só fui descobrir no terreiro: os conceitos estéticos que balizavam as produções artísticas naqueles contextos, bem distintas das ocidentais. (…) Vi uma exposição de Mestre Didi e entrei em êxtase, como quando vi o Olodum descendo a praça Castro Alves. Tudo isso é um devir-ritual…”.

Reatrato de Ayrson Heráclito. Foto: Matthieu Rougé/Divulgação

O livro é um convite instigante ao aprofundamento nos muitos temas tocados pela alimentação e pela arte, que se cruzam em nossa formação cultural e também pessoal, abordando um ponto de vista ainda pouco explorado pela pesquisa na História da Arte, mas que todo bom cozinheiro sabe: para preparar os nossos alimentos, é necessária certa dose de arte.

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