A Anunciação, como o próprio nome já entrega, é a passagem bíblica que narra o episódio durante o qual o anjo Gabriel aparece para Maria anunciando que ela estava gerando o filho de Deus e que deveria chamá-lo de Jesus após seu nascimento. Esta cena, portanto, não carrega uma história complexa e desconhecida por trás como as outras cenas que apresentamos nesta seção, mas a sua importância para a história da arte não é menos importante por ela ser mais “conhecida” do que as outras.
A sua importância reside, sobretudo, em sua aparente “simplicidade”, uma vez que a composição da Anunciação é, na esmagadora maioria das vezes, a mesma: Maria e o anjo Gabriel. Desta forma, a Anunciação é uma cena típica que permite uma profunda análise comparativa entre as obras produzidas em momentos diferentes, com técnicas diferentes e por artistas diferentes. Certamente uma versão produzida durante a primeira fase do renascimento, o Trecento (século XIV), será muito diferente daquelas produzidas em fases posteriores como o Quattrocento (século XV) ou o Cinquecento (século XVI).
Estudando a História da Arte muitas vezes temos a mania de colocar obras de períodos distintos em um mesmo “monte”, como se o renascimento italiano, por exemplo, tivesse sido um movimento fugaz e passageiro e como se todo artista do renascimento tivesse pintado da mesma maneira e na mesma época. O que vale ressaltar é que o renascimento, por exemplo, foi um movimento que se estendeu por mais de três séculos: XIV, XV e XVI. E, assim, duas pinturas renascentistas que retratam a anunciação podem estar separadas por mais de 100 anos, o que é mais ou menos a diferença entre uma tela de Pablo Picasso e uma de Damien Hirst.
Para que a análise seja possível, é necessário um recorte, por isso restrinjamo-nos ao renascimento italiano. As obras estão organizadas da mais antiga, no topo da matéria, à mais tardia, ao fim. Assim é possível observar algumas evoluções com bastante clareza. A mais antiga é uma obra de um artista sienense chamado Simone Martini, de 1333. Ela foi feita com a técnica da têmpera, que envolve pigmentos e um aglutinante que era frequentemente clara de ovo, sobre madeira. O fundo dourado é típico do período pré-renascentista e início da sua primeira fase. Aspectos como volumetria e perspectiva ainda são muito incipientes: as figuras estão “chapadas” sobre a superfície da tela. Uma das características principais na evolução do renascimento é aproximação do sagrado ao humano e a consequente e gradativa “humanização” das figuras sagradas. Nesta obra de Martini ainda não é possível pensar que as figuras que a compõem são humanas, elas ainda estão elevadas ao status de “representações divinas”.
Já na versão de Fra Angelico, feita em 1442 e, portanto, cerca de 100 anos após a primeira, é possível enxergar algumas diferenças: em vez do fundo dourado temos uma paisagem terrena; as figuras agora são ligeiramente mais “humanas”; a profundidade e a volumetria da obra foram aprimoradas e já é possível ver o estudo da perspectiva com a presença de um ponto de fuga. Entretanto, o observador ainda tem a impressão de uma representação sagrada: tanto o anjo como Maria possuem auréolas sobre as cabeças que ainda os elevam e distanciam.
A seguir, trinta anos mais tarde, Leonardo Da Vinci apresenta a sua versão da cena, pintada em 1472, quando ele tinha apenas 20 anos e, portanto, longe da sua maturidade artística. Mesmo assim, a versão de Leonardo já demonstra uma enorme evolução na técnica. Tanto o anjo quanto Maria são representados de forma mais “humanizada” e a perspectiva e a volumetria já estão muito aprimoradas. Vale ressaltar também o conjunto de árvores ao fundo. Da Vinci era apaixonado pela natureza e estudava em demasia, a preocupação em retratar árvores tão diferentes vem desta observação assídua e do estudo do natural.
Já no fim do século XV, em 1489, Botticelli pinta a mesma cena. Sua versão, comparada à de Fra Angélico, é muito mais sofisticada. Através da janela é possível vislumbrar uma paisagem ao longe o que indica a preocupação com a forma, com o estudo e com a técnica para além daquilo que está sendo retratado no primeiro plano. Durante a evolução do renascimento, pouco a pouco o homem passa a estudar mais a si mesmo e o mundo ao seu redor e isso é nítido nas obras de arte. Nesta obra, tanto o anjo Gabriel quanto Maria já se assemelham mais a figuras humanas, apesar de ainda serem retratados com auréolas.
Já chegando à conclusão deste percurso analítico temos a versão do mestre Rafael, pintada em 1502. Nesta obra o domínio da perspectiva, da noção de arquitetura, da volumetria, da harmonia e da proporção são inegáveis. Se não fossem as asas do anjo e uma representação de Deus acima, do lado esquerdo, poderíamos dizer que que não são Maria mãe de Deus e o anjo Gabriel, mas sim dois seres humanos comuns, sem auréolas, trajes ou brilhos especiais.
Um século mais tarde, em 1608, Caravaggio, maior expoente do barroco italiano pinta a anunciação. Apesar de ele não ser renascentista e do barroco ter motivações e especificidades completamente distintas às do movimento anterior, é interessante colocar essa tela ao lado das demais para observar exatamente a diferença entre o renascimento e o barroco. A transição da luz, da linha reta que no barroco se curva, da composição ligeiramente caótica e da humanização do sagrado. Maria na tela de Caravaggio é apenas uma mulher, que se curva diante da presença de um anjo. Eles não são nem sequer representados na mesma linha: o anjo está acima, Maria está abaixo.
Há ainda, o que não coube aqui analisar, muitas outras representações desta cena. Pertencentes a muitos outros artistas, de outros países e movimentos que não a Itália, à qual nos restringimos aqui. Entretanto, o convite é à análise. Conhecer a cena retratada pode ser o primeiro grande passo para compreender o movimento no qual esta retratação está inserida, a forma como ela se dá e o que isso representa para a História da Arte. Portanto, atento para as próximas #CenastípicasAQA.