Carlos Zilio e um amor pela pintura

Marcado pela luta contra ditadura no Brasil, o trabalho de Carlos Zilio ganhou sentimento de distopia (Imagens cedidas pela Galeria Raquel Arnaud)

por Beta Germano
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Tamanduá e a memória, de Carlos Zilio
Tamanduá e a memória, de Carlos Zilio

Albino Zilio tinha um tamanduá mirim que o acompanhava para todos os lados. Um dia Albino precisou viajar e, por isso, o animal ficou profundamente triste. Parou de comer. Ele costumava descer a escada pelo corrimão, mas desta vez perdeu a força. Caiu e morreu. Em 1986 o artista carioca Carlos Zilio usou o tamanduá em queda como temática por causa do falecimento de seu pai como uma espécie de luto. O animal, inclusive, aparecia muitas vezes ao lado de caveiras – uma referência à Cézanne e à propria morte. 

Há 12 anos a figura voltou para suas telas, mas o mamífero, devorador de formigas e cupins, ganhou outra conotação, para o artista, nos últimos anos: agora ele pode ser visto como metáfora num país de “muita saúva e pouca saúde”. Muito antes da pandemia o artista já compreendia o que ficou mais claro ou óbvio os últimos meses:  “Não é mais sobre o meu pai. Eu quero falar sobre o nosso um vínculo essencial com a natureza botânica,  animal e  humana que está em queda. É sobre uma civilização em queda.” , explica. Este sentimento de distopia e fim da crença na história como progresso  começou a rondar a mente do artista desde os anos 1980 – período em que Carlos Zilio, muito conhecido por seu trabalho político,  retomou a pintura que na época estava declarada morta! Mas para entender sua posição do pintor hoje, é preciso sua trajetória. 

Política pop

Era 1962 quando o jovem Carlos Zilio, então com 18 anos, começa a estudar pintura Instituto de Belas Artes da Guanabara, tendo aula com ninguém menos que Iberê Camargo.Dois anos depois, o regime militar é instaurado no Brasil e apesar do interesse genuíno pela pintura e questões mais formais, Zilio como muitos artistas da época se viu quase obrigado a usar a arte militância política e tentativa de transformação social. Ele deixou, então, o namoro com o pincel de lado. “Pintei muito pouco como estudante. Quando comecei a participar de exposições públicas, o mundo da arte estava voltado para trabalhos experimentais e os artistas interessados  pela cultura de massa”, explica o artista que durante um bom tempo se identificou com a estética da pop art e com a turma da nova figuração brasileira, grupo de artistas que aproveitou as experiências estadunidenses, mas buscava uma expressão de identidade nacional – pense em Rubens Gerchman, Antonio Dias, Roberto Magalhães, Carlos Vergara. 

Nos anos seguintes ao golpe, o artista participa de importantes icônicas exposições da época como Opinião 65 e Nova objetividade brasileira mantendo diálogo com uma juventude que queria aproximar-se da vida diária e pretendia ser independente, “polêmica, inventiva, denunciadora, crítica, social e moral”, como definiu Ceres Franco no texto de abertura da Opinião 65.

Lute, 1967

Em 1967, Zilio cria uma de suas obras mais famosas e significantes: uma marmita com a palavra “lute” deveria ser um múltiplo distribuído nas portas das fábricas, como se fosse um panfleto. “Passei a achar mais urgente uma resposta política de intervenção na realidade e fui me engajando cada vez mais. Deixei de produzir arte para me ligar completamente à militância”, explica o artista que parou de produzir entre 1968 e 1969. No ano seguinte, durante uma ação, o artista levou 3 tiros ( um na cabeça!) e foi preso. Durante o período que esteve na cadeia voltou a produzir intensamente, com materiais mais precários, e fez uma série de desenhos e pinturas que evocavam a luta pela vida e a violência da época. 

Sem título (espaço vida. Disponível na galeria)
Espaço-vida, 1974

Do pop ao ready made

A partir do momento em que saiu da prisão, em 1972,  Zilio começou a ser mais influenciado por Duchamp, os concretistas russos e a arte conceitual, usando a tela ou o papel apenas para fazer esquema gráficos, uma não pintura, caso de Processo da Libertação, de 1974, ou Espaço vida, de 1973. Nesse período criou outras obras que ficaram marcadas em sua iconografia fortemente como a mala de executivo recheada de pregos, intitulada Para um Jovem de Brilhante Futuro;  um autorretrato representada por uma mancha de sangue;  um corpo com uma etiqueta como se estivesse morto com as palavras “identidade ignorada” ou um espaço definido no piso da galeria também cheio de pregos nomeado de Identidade Espaço-vida, além dos inúmeros trabalhos que sugerem um  clima de tensão e equilíbrio. São trabalhos que abraçam a estética minimalista, mas dão recados fortes. “Eu queria mostrar o que está por um fio ou no limite para cair!”, revela. 

tensão e atensão, Carlos Zilio
tensão e atensão, Carlos Zilio
Identidade Ignorada, Carlos Zilio
Identidade Ignorada, Carlos Zilio
Para um Jovem de Brilhante Futuro
Para um Jovem de Brilhante Futuro

Pintura, o retorno 


Por causa da perseguição política, Zilio vai morar em Paris. Na Europa, o contato com a tradição é inevitável e, no caso dele, transformador. Zilio, que via a arte como uma extensão da atividade política, reviu sua posição.  Trocou a arte conceitual pela pintura, abandonando o contexto experimental para abraçar há mais 30 anos a técnica secular, condenada pelas aquelas vanguardas. “Até ir morar na Europa eu tinha um preconceito imenso com museus.  Vinha de uma visão de vanguarda política e plástica. Mas experimentei a derrota disso, o que me fez ter uma relação mais cuidadosa com a história”, revela o artista ao crítico Paulo Sérgio Duarte. 

“Nos anos 1960 e 1970 a história estava sendo construída por sentimentos de vanguarda que se acreditavam no movimento em direção ao progresso. A visão de vanguarda, aliás, está necessariamente ligada a este progresso e a partir do final dos anos 1970 eu passei a desenvolver um sentimento crítico em relação a tudo isso”, explica. A sucessão desses movimentos progressistas levou à suposta morte da pintura e o artista acredita justamente no oposto: “Voltei a pintar para mostrar que as coisas não se dão por evolução linear. Presente e passado estão sempre em relação e a pintura tem um considerável nesse sentido porque é uma mídia de longa duração e isso permite você estabelecer relações e diálogos entre diferentes momentos da história”.  

O delírio de Tales (a prova dos nove), 1981
Dia após dia, 1986

O encontro com Cézanne foi fundamental nesse processo. “Vi uma retrospectiva do Cézanne que trazia um sentimento de solidez muito grande. Algo que situava você no tempo. E dava uma dimensão de um processo histórico embutido na pintura. Essa exposição e outra do Jasper Johns foram muito importantes para reestabelecer o meu vínculo com a pintura. Foi uma época em que estudei muito, li muito”, explica.

Em autoexílio o artista também passou a questionar o que era ser um artista brasileiro criando telas em diálogo, por exemplo, com as paletas de Tarsila do Amaral e Volpi.   Mas a questão entre nacional e internacional tende a se esgotar em torno de 1985 e aos poucos eu vou apagando a paisagem e dando espaço para uma pintura mais subjetiva, mais intimista e intimista. “A pintura se tornou o meu problema, uma sedução que você não consegue descartar. No dia seguinte que você acabou o quadro, ele já é insuficiente”, revela. 

O jardim de Matisse, 1984
Submerso, 1986

Nos anos 1990 há uma demarcação de um vocabulário pessoal por meio de uma cor neutra e pela demarcação do espaço da tela com uma linha vertical e duas horizontais. A ideia era estudar as relações básicas de percepção. No final desta década essa ortogonalidade ganha curvas, há uma relação com o tempo e uma reafirmação de uma escala que se relaciona diretamente com o corpo do espectador. O gesto e a textura passa a ganhar importância crucial.  O fato da pintura ter esse vínculo com a História da Arte faz com que o artista se interesse também pela arte rupestre e, talvez por isso, o tamanduá atual apareça em formas simples, de perfil e muitas vezes acompanhado por impressões de mãos e rastros de gestos. E você pergunta: é possível definir o estilo de Carlos Zilio em um estilo ou tema? Não e é aí que está a potência de sua obra e processos. “O trabalho está sempre se apoiando em alguma coisa e, ao mesmo tempo, colocando aquela mesma coisa em dúvida. Há sempre o desafio de fazer algo que seja novo”. Aos 76 anos ele segue inquieto e questionando o mundo. Não é por isso que amamos (e precisamos) dos artistas?

A queda do tamanduá, 1986
Tamanduá no vazio, 2008
Sem título, 2016

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