Foi sentada desenhando no chão que Carla Chaim começou a perceber que seu próprio corpo fazia parte daquele espaço, daquele desenho. Tendo o corpo como instrumento de trabalho, suas obras expandem os limites entre a performance e o desenho, ao mesmo tempo em que projetam afinidades entre a dança e as artes visuais.
Durante os anos de 2006-2011 a artista teve seu ateliê localizado no centro de São Paulo, o que fez com que índices da brutalidade da cidade fossem incorporados a materialidade de suas obras. É neste período em que ela começa a trabalhar com grids, tonalidades de cinza e a compreender os limites do corpo em sociedade. Sintomas que permanecem vivos até os dias de hoje em sua poética.
Desde seus primeiros trabalhos, é possível notar a criação de um sistema coreográfico na elaboração dos desenhos. A experiência corporal é o motor de sua investigação, seja pautada pela regra ou pela improvisação. Como coloca André Lepecki, em Coreopolítica e coreopolícia de 2013, a coreografia “é, antes de tudo, a matéria primeira, o conceito, que nomeia a matriz expressiva da função política.”
É por este conceito coreográfico que Febre é anunciada. Trata-se de um corpo em pausa pela pandemia, porém em movimento pelas tensões políticas que nos são contemporâneas. Deste modo, a artista questiona: “Que corpo é esse que deixa seu gesto, sua marca como cicatriz, corte e arranhões no mundo e vai embora? O que acontece com esse corpo que golfa suas vivências? Que mundo é esse, tão atormentado?”
A presença do corpo que arde em Febre é tão expressiva que poderíamos dizer que esta é uma exposição de performance, mesmo expondo apenas desenhos, pinturas e vídeos. Arranhar, cortar, bater e amassar são alguns dos verbos que se repetem nas coreografias que constituem os trabalhos em exposição. E se antes as cores preto e branco davam o tom deste corpo coreografado, agora elas estão acompanhadas da cor vermelha. Do vermelho que transborda sobre o asfalto da cidade que sangra.
A coreografia de um sistema regrado, com trabalhos que partem do ato de desenhar concomitantemente com as duas mãos, passa a conviver junto a coreografia de um sistema descontrolado. Raiva, indignação e tristeza são algumas das sensações que estão presentes no processo criativo de Febre. Nas palavras da artista, “Acredito que o corpo é uma entidade viva que está sempre em modificação e é colocado a prova como estado de transgressão também na arte”.
Mas a dobra na produção de Carla Chaim vai além da coreografia e da paleta cromática, ela ainda se faz presente nas pinturas de óleo sobre linho e no modo como a maioria dos trabalhos estão dispostos no espaço. Há uma espécie de galeria dentro da própria galeria, estruturada por grids de madeira que suspendem os trabalhos. Uma estrutura que permite que o espectador veja também o verso das obras.
A respeito das pinturas de óleo sobre linho, vale mencionar a série “Tapas”, de 2020. São trabalhos que imprimem as marcas dos dedos das mãos da artista após o ato de tapear. Uma série que, pelo tamanho das telas, sugere a expressão de um tapa na cara. É com este gesto que Febre faz o corpo arder ao sussurrar nos ouvidos de seus visitantes: se o sangue está literalmente escorrendo nas ruas, por que com a arte haveria de ser diferente?
Febre
Local: Galeria Raquel Arnaud
Endereço: R. Fidalga, 125, São Paulo
Data: Até o dia 18 e dezembro